O que os espíritas precisam saber VII
A verdadeira missão da FEB em sua fundação
No Brasil, a Federação Espírita Brasileira foi criada sem nenhuma pretensão de dirigir, determinar, filiar, liderar ou chefiar os espíritas, nem mesmo instituir uma religião, como se pode constatar em seu primeiro estatuto, publicado no Reformador de 1º de março de 1893, n. 247, propondo que todos os espíritas participem de sua tarefa primordial, que é a propaganda do Espiritismo, pois a sua finalidade, definida em seu artigo primeiro, era o seguinte:
Dar o máximo desenvolvimento às conquistas do Espiritismo; concorrer para a sua mais lata disseminação pela sociedade. Fomentar a solidariedade e a fraternidade entre todos, procurando erguer o nível moral.
O significado de uma “mais lata disseminação” é o de não exclusivismo, acesso a todos, independentemente de a qual religião pertença, respeitando a proposta de Kardec de não se constituir como seita ou denominação religiosa, mas uma “ideia” acessível a todos, pois seu objetivo é colaborar com a renovação social. Ou seja, quando de sua fundação, esse estatuto estava coerente com o ideal original do Espiritismo.
Em seu parágrafo único do artigo terceiro, todos os espíritas membros, contribuintes ou não, “têm o direito de concorrer com seus conselhos para as deliberações da Federação”.
Nessa época, os adeptos de Roustaing no Brasil eram alguns poucos, em grupos fechados consagrados ao estudo de sua obra. O movimento espírita estava representado majoritariamente pelos que compreendiam o Espiritismo como ciência filosófica destinada a esclarecer a todos, independentemente de qual credo religioso adotem, os princípios da lei natural que rege o espírito humano.
Sofrendo a perseguição dos inimigos do movimento espírita brasileiro – os ateístas, os materialistas, os positivistas, os católicos, os protestantes -, os espíritas uniram-se em torno da criação da Sociedade Acadêmica Deus-Cristo-Caridade, para defender o direito de exercer o estudo do Espiritismo sem afrontar os direitos legais da religião oficial do Império, nem a proibição legal de instituir sociedades secretas. Primeiramente os espíritas foram perseguidos pelo clericalismo do regime monárquico, depois mais fortemente ainda pelo positivismo materialista do regime republicano.
A união dos espíritas do Rio de Janeiro ocorreu no dia 3 de outubro de 1879, no prédio público da Escola Normal, concedida pelo companheiro José Bento, ministro do Império. Nesse dia, os sócios e representantes das sociedades espíritas Grupo Confúcio, Sociedade de Estudos Espíritas Deus-Cristo-Caridade, Congregação Anjo Ismael e Grupo Caridade resolveram:
Tendo sido deliberada a fusão dessas quatro sociedades, foi solenemente aberta a assembleia de fundação e instalação da Sociedade Acadêmica Deus-Cristo-Caridade. ( TORTEROLI, 1898, p. 13-4). QR Code publicado na página 104 do livro Autonomia a história jamais contada do Espiritismo – https://espirito.org.br/autonomia/regulamento-confucio/
Para termos ideia da representatividade dessa sociedade, os cinco diretores, nessa assembleia primeira, foram eleitos por meio do preenchimento de cédulas por 645 espíritas presentes! Um número absolutamente expressivo para a época, demonstrando a urgência e a unanimidade quanto à legitimidade dessa iniciativa. Foram eleitos o doutor Francisco de Siqueira Dias, Carlos Joaquim de Lima e Cirne, Francisco Carlos de Mendonça Furtado de Menezes, doutor Antônio Pereira Guedes, Salustiano José Monteiro de Barros e os auxiliares da diretoria, João Paulo Temporal, professor Angeli Torteroli, entre outros.
Em 21 de janeiro de 1883, teve início a publicação do jornal Reformador, com o subtítulo Órgão Evolucionista. Esse empreendimento foi concretizado pelo uso da prensa antes utilizada para a confecção da Revista da Sociedade Acadêmica Deus-Cristo-Caridade, que teve a iniciativa dessa propaganda do Espiritismo: “Encarregaram-se da redação desse jornal o diretor da União Espírita, Augusto Elias da Silva e os membros da comissão confraternizadora, doutor Antônio Pinheiro Guedes e Angeli Torteroli”. Em seu primeiro número, os redatores apresentaram o Espiritismo como proposta de união em torno de um futuro solidário para o mundo:
As ideias preconcebidas, os hábitos, os preconceitos e vícios adquiridos, são as montanhas escabrosas que dificultam a marcha: madeiros que atravancam o caminho, parcéis que embaraçam os portos. Umas e outras, por isso, não podem constituir materiais de nenhuma escola, a nenhuma pode filiar-se. Ainda mais: se as hipóteses são úteis, podem mesmo tornar-se necessárias, as ideias preconcebidas, o apego aos conhecimentos adquiridos, o hábito, a tendência à imobilidade são contrários ao progresso, e por isso devem ser combatidos como elementos de estagnação de aniquilamento. Esta é a tarefa de cada um, e, portanto, igualmente a do Reformador: caminhar em linha reta, tendo em mira o alvo que é comum a todos, seguindo sempre no sentido da direção inicial. É isto que ensina o Espiritismo. ( REFORMADOR, ano I, 21 jan. 1883, p. 1)
E então conclui o artigo: “Iluminados pela luz da Doutrina Espírita, somos evolucionistas, essencialmente progressistas”.
Em seu segundo ano, o jornal passou a ser órgão da Federação Espírita Brasileira.
Affonso Angeli Torteroli respondeu a uma pesquisa do Reformador, tendo seu depoimento pessoal publicado na mesma edição de 1º de março de 1896, quando o primeiro estatuto da FEB foi levado a público. De uma família católica, os dogmas não atendiam ao seu pensamento racional, e acabou seduzido por amigos céticos que lhe ofereceram livros materialistas, que por um tempo o convenceram. Influenciado por amigos, como Casemiro Lieutaud, investigou o Espiritismo e a obra O Céu e o Inferno, de Kardec, persuadiu-se da impossibilidade da condenação eterna. Em maio de 1874, pertencia ao primeiro grupo espírita do Rio de Janeiro, Grupo Espírita Confúcio ( sociedade de estudos fundada em 1873). Sabendo que o Espiritismo era uma ciência filosófica e não uma denominação religiosa, tentou continuar os sacramentos, mas diante do questionamento do padre:
– O senhor não me disse que era espírita?
E Torteroli respondeu:
– Não é um pecado estudar a Ciência Espírita, desde de que não se abandone a religião de seus pais.
Mas o sacerdote declarou:
– Se o senhor não abandonar o Espiritismo, não o absolvo.
E ele prontamente respondeu:
– O reverendo já me absolveu e até já cumpri a penitência.
Mas o padre vociferou furioso:
– Pois, não lhe dou a comunhão, porque o senhor pertence a Satanás!
Torteroli tornou-se verdadeiramente espírita, livre das superstições e dos preconceitos, declarando ter por divisa “estudar a ciência espírita e praticar a moral cristã, isto é, estudar as leis que regem os fenômenos espíritas e praticar a moral do Cristo por ser a moral universal e a mais pura perante a razão do século” (REFORMADOR, ano XI, 1º mar. 1893, 247, p. 2-3).
Desenvolveu a mediunidade psicográfica, depois a psicofonia. Inicialmente as mensagens dos espíritos contrariavam as suas próprias ideias e pensamentos, muitas vezes em resposta a perguntas mentais de evocadores, mesmo não espíritas. Por fim, deu em seu depoimento uma lúcida declaração, profissão de fé, demonstrando ter compreendido a moral espírita como autônoma, apoio das ideias progressistas, exatamente como proposta por Allan Kardec, apenas trinta anos antes na França:
Admito que Deus não castiga e não perdoa, porque ama a todos Espíritos e espera que livre e conscientemente pela evolução moral e intelectual, por meio de diversas encarnações, de corpo a corpo e de mundo a mundo, cada espírito consagra a todos os seres em qualquer classe ou ordem que se ache na escala da perfeição. Estou convencido de que, pela caridade e amor do próximo de ente a ente, de criatura a criatura se chegará ao nosso bom pai, o Deus criador da única lei absoluta, a santa e eterna — Lei de Amor.(Ibidem)
Enfim, havia no Brasil uma maioria lúcida, consciente da proposta do Espiritismo de Kardec como doutrina liberal, assim como na França agiram os pioneiros fiéis ao mestre, fundadores da União Espírita da França. Também lutaram contra uma minoria que se apossou da revista, da entidade representativa constituída pela maioria e da editora. Também se repetiu no movimento espírita brasileiro o desvio patrocinado pelos roustainguistas. Os inimigos invisíveis repetiram seu plano para seduzir mãos amigas, poucas décadas depois, em outro continente.
Anos depois, desejosos de fazer prevalecer a adoção pela entidade da obra de Roustaing, alguns poucos dirigentes implantaram um regime de exceção na Federação Espírita Brasileira, como explicou Leopoldo Cirne, seduzindo e oferecendo a Bezerra de Menezes plenos poderes até o dia de sua morte.
“Esse regime, porém, propriamente ditatorial deve cessar” (REFORMADOR, 15 de fevereiro de 1901, p. 3). Novos estatutos foram admitidos, mantendo a pretensão de eleger um chefe. E como ocorreu anteriormente na França com Leymarie, a adoção de uma autocracia também iria levar a um resultado fatal, como previsto por Kardec.
No dia 20, tendo dominado a FEB e o Reformador, os diretores roustainguistas fizeram uso dessa estrutura para contar a história do movimento espírita a partir de seu ponto de vista. Demonizando os opositores, escolheram fatos, coroando deturpadores como se fossem heróis. Marc Ferro, entre outros historiadores, relata o conceito de uma história silenciada. Uma narrativa histórica pode ser adulterada por diversos interesses, sejam ideológicos ou políticos, de tal modo que só uma face da realidade seja conhecida. Dominando o registro dos fatos, e tendo sobre seu controle a publicação de livros, apostilas e manuais, controlando congressos, a versão messiânica, salvacionista, heterônoma, do desvio roustainguista cobriu com o véu do dogmatismo místico os verdadeiros conceitos doutrinários espíritas e silenciou Kardec.
Canuto Abreu conservou, como subsídio para a história do movimento espírita brasileiro, uma carta manuscrita de Manuel Quintão para seu amigo Pedro Richard, um roustainguista histórico, de primeira hora.
Em 1912, reacende o interesse de se aprovarem novos estatutos. Nessa época, Manuel Quintão atuava na Federação como médium receitista. Tempos depois viria a ser eleito presidente, por mais de uma vez.
Inicia assim a carta:
Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 1912
Meu caro Richard:
De há tanto tempo tenho, igualmente, considerado me desligado da Federação. Desligado, bem se entenda, socialmente, porque moralmente, guardei, guardo e guardarei com alguns dos seus membros a carinhosa e superior solidariedade.
Eram, afinal, amigos. Enquanto Richard já estava nos 59 anos de idade, Quintão tinha 39. A proximidade entre os dois justifica a exposição sincera de suas opiniões, revelando o que não se observa na superfície da entidade, mas somente nas suas entranhas:
Mas , corre-me o dever de justificar o propósito inabalável de não aceitar quaisquer cargos e compromissos no seio dessa coletividade, a não ser que os possa exercer ou desempenhar por meu arbítrio, ou antes, nos moldes espíritas como eu os entendo, isto é, com inteira liberdade de consciência e ação. […]. De há muito, meu caro amigo, eu venho notando entre os que dirigem a Federação, na permuta de atos e de palavras, um tal ou qual prurido de hegemonia doutrinária, com laivos de presumida superioridade, bem-intencionada, decerto, mas de todo contraproducente e repugnante a espíritos redimidos de uns tantos preconceitos de autoridade”. QR Code publicado na página 108 do livro Autonomia a história jamais contada do Espiritismo – https://espirito.org.br/autonomia/carta-manuel-quintao/
Segundo Kardec, “A causa mais comum de divisão entre cointeressados é o conflito dos interesses, e a possibilidade para um de suplantar o outro em seu proveito” (KARDEC, [RE] 1868, p. 249). E ele propõe a solução, afirmando que a autoridade do presidente deveria ser puramente administrativa, não podendo tomar nenhuma decisão isolada, e conclui: Portanto, nada de abusos possíveis, nada de alimentos à ambição, nada de pretextos de intrigas nem de ciúmes, nada de supremacia ofensiva”.
Continua Quintão:
Tornasses um a um de cem sócios dessa casa, e um a um interrogasse, que verias com ideias ululantes e contraditórias a respeito de Doutrina… Isto, no terreno das teorias, porque no das práticas, nem devemos falar… Eu pergunto: neste caso, onde está o fruto do trabalho de longos anos? Nas sessões? Mas as sessões são isócronas e monótonas, dando uma triste copa de nossa fraternidade. Nas obras do Espiritismo divulgadas? Mas essas obras só são adquiridas pelos conhecedores da Doutrina, e só platonicamente influem e atuam nos poucos que leem, nos pouquíssimos que sabem ler.
Os estatutos da sociedade, que seriam aprovados, segundo o médium precisavam de profundas revisões para abolir seus vícios:
Os estatutos que vocês veem de promulgar, têm disposições verdadeiramente draconianas, de um exclusivismo e e um individualismo inconcebíveis, numa comunidade verdadeiramente cristã.
Todavia, num dia de chuva, poucos se atreveram a enfrentar o mau tempo naquele sábado à noite, 1º de fevereiro de 1912, e seus 126 artigos foram aprovados de uma assentada, encerrando a assembleia (REFORMADOR, 1º fev. 1912, n. 3, p. 46-7).
Mas ao fim, todos veremos que não construímos senão um templo de pedra, como a pedra fria e dura. Uma bela casa onde verdadeiros preceitos de altruísmo cristão são relegados ao segundo plano, para maior realce das ordenanças de bom tom social, de um ritualismo tão estéril quão ridículo.
A ambição de se proclamar chefe, porém, tem preço alto a pagar, e o autoritarismo torna fatal a consequência de afastamento dos propósitos da Doutrina Espírita, que é a fraternidade. Então, a carta se encerra assim:
Sinto que tão amargas sejam as minhas impressões de quanto aí vejo, e a ti, que és meu amigo e meu irmão, ao menos pelo desejo de acertar, ouso confiá-las com o desejo de que possa atenuar o mal nas suas consequências mais afastadas, reagindo contra esse autoritarismo inconsequente, que é o maior escolho da propaganda e torna suspeitíssima a atitude de cada um dos Diretores da Federação, que continuo a reputar bem-intencionados. Seu irmão e amigo, Manoel Quintão.
No atual estatuto da FEB, no parágrafo único do artigo primeiro consta o seguinte: “Além das obras básicas a que se refere o inciso I, o estudo e a difusão compreenderão, também, a obra de J. B. Roustaing e outras subsidiárias e complementares da Doutrina Espírita”. Apesar de que, a qualquer momento, uma assembleia poderia ter alterado esse desvio. Mas nada se fez nos últimos cem anos.
Referência:
1- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo / Paulo Henrique de Figueiredo — São Paulo(SP): Fundação Espírita André Luiz, 2019.