O que os espíritas precisam saber VIII

22 de Março de 2025 Não Por Sergio França Martins

A solidariedade entre o pesquisador e o médium
Quando Canuto Abreu chegou à França em 1921, depois da Primeira Guerra Mundial, encontrou o Espiritismo mantido por alguns dos antigos adeptos, mas abandonado pela maioria. Sua imagem estava desgastada diante da opinião pública francesa. Enquanto isso, no Brasil, o roustainguismo dominava a Federação Espírita Brasileira. Representativamente, em nenhum lugar do mundo havia guarida plena e segura para a verdadeira Doutrina. Em 1934, diante de fartos documentos, Canuto elaborou, na calada de seu gabinete, sua forte denúncia. Mas guardou silêncio, meditando sobre como e quando agir. Seria momento adequado para fazer a grave revelação? Sabemos hoje que o pesquisador reservou para o futuro seus artigos históricos, declarações dos pioneiros, registros e documentos originais de Allan Kardec.
Vamos em busca da razão dessa espera.
Uma das mais amareladas páginas do acervo, rodeadas por manchas escuras e com as bordas corroídas, é uma cópia de missiva datilografada sobre papel de seda leve e macio. O cabeçalho cita: “São Paulo, 29 de abril de 1937, Francisco Cândido Xavier, paz, saúde e alegria”.
Essa não foi a primeira vez que o médium e o pesquisador se encontraram, mas representa o registro de uma amizade, cumplicidade firme, compromissada e duradoura. Inicia Canuto contando:
Recebi com muito prazer seu obsequioso cartão, pelo qual demonstrou não haver esquecido de minha insignificante pessoa, apenas encontrada no meio de tanta gente importante, que o rodeou curiosa e reverente em São Paulo. Guardei excelente impressão de nosso encontro e nenhum elogio ou adulação vai em dizer-lhe, com sinceridade, que aprecio o seu dom mediúnico. Sensitivo como é, não verá no que se segue senão o fruto da minha admiração e apreço.  https://espirito.org.br/autonomia/carta-canuto-para-chico/
O jovem médium, com apenas 27 anos nessa época e ainda pouco conhecido, havia publicado apenas três livros: Parnaso de além-túmulo(diversos espíritos pela FEB, Rio de Janeiro, Cartas de uma morta(de Maria João de Deus, sua mãe) e Palavras do Infinito (Humberto de Campos) pela LAKE (Livraria Allan Kardec Editora), em São Paulo. Chico foi a essa cidade para Semana do Espiritismo e Metapsíquica entre 23 e 31 de março de 1937. Foi nessa ocasião que abraçou, entre as personalidades espíritas, Cairbar Schutel (1868-1938), de Matão; ambos conversaram sobre a divulgação do Espiritismo pelo rádio, na casa do amigo comum João Batista Pereira, na rua Júpiter, bairro da Aclimação em São Paulo. Foi a única vez que estiveram pessoalmente juntos. Nessa semana, esteve também, muitas vezes, com Canuto Abreu, que em 1935 havia fundado, com o advogado João Batista, o médico Augusto Militão Pacheco, Pedro Lameira de Andrade e outros, a Sociedade Metapsíquica de São Paulo, entidade que promoveu a vinda a São Paulo do médium mineiro. Nessa ocasião, Chico fez uma famosa psicografia invertida em inglês (colocada junto a um espelho para se ler), por Emmanuel, num papel timbrado da Sociedade, assinado e datado por pessoas presentes naquele instante.
Continua a carta íntima de Canuto ao Chico:
Como sabe, uma das qualidades mais estimadas no médium – e que o amigo possui – é a simplicidade. Oxalá jamais a perca, meu amigo, no convívio conosco, que somos cheios de defeitos. Três são os grandes inimigos da simplicidade: a soberba, o egoísmo e a cobiça. Seu guia Emanoel(Emmanuel) teria muitas vezes falado desses escolhos. Mas sempre é bom que a gente que o estima e o quer ver triunfante recorde de vez em quando a lição. Falo por longa experiência no mediunismo. Tenho visto a exaltação, a glorificação, o declínio, a queda, o aniquilamento de muitos médiuns que esqueceram, na hora da prova, a lição do guia. O amigo continua descrevendo ao jovem médium iniciante os escolhos do caminho daquele que decide servir como instrumento do além. Jamais usufruir de qualquer recurso financeiro, mesmo mínimo ou indireto, dessa atividade, essa é a recomendação fundamental, desde Kardec. Nos detalhes é que permeia o maior perigo: “Basta querer parecer, como médium, mais beneficiado que os outros. Basta dispensar favores da mediunidade a uns, negando-os a outros. Cobiça é ostentar, negá-la aos humildes. Cobiça é dispensá-la aos graduados preterindo-a aos pequeninos. Egoísmo é dizer: agora não posso, estou cansado, preciso almoçar, estou triste, estou em más condições de receptividade. Egoísmo é dizer aos necessitados de esperança: só dou consultas em tal parte, com tal círculo, em tais condições. Se quiser me procure mais tarde. Egoísmo é temer parecer ridículo diante de incrédulos. Egoísmo é recear uma crítica desagradável. Ora, de tudo isso o amigo se livrará se continuar a viver na simplicidade, em que eu o vi entre nós. Não saia dela jamais, por Deus!”.

Começava aí uma amizade profunda, selada pela sinceridade de quem se preocupa com o futuro. E então conclui:

Peça ao Emmanuel desculpas pelo meu atrevimento de entrar na seara dele com estes avisos de irmão mais velho. É que muitas vezes ele não pode, por mais adiantado que eu, ferir o seu livre-arbítrio, ou intervir nos seus pensamentos. E eu, como espírito atrasado, posso, bastando para isso ser ousado como ora sou. Escreva-me quando puder.

Referência:
1- Autonomia: a história jamais contada do espiritismo/Paulo Henrique de Figueiredo — São Paulo(SP); Fundação Espírita André Luiz, 2019.