Relacionamento Médico-Paciente

19 de Janeiro de 2015 1 Por JORGE Baldez

Completei em Dezembro de 2014, nada mais, nada menos, que 39 anos de exercício da medicina. Lembro que iniciei a minha profissão em uma pequena cidade do nosso estado chamada de Anajatuba.
Essa experiência me levou a atender várias especialidades como: Obstetrícia, Cirurgia, Clínica Médica, Pediatria que me concederam algum entendimento da medicina vivenciada na precariedade de um pequeno posto de saúde, que depois se transformou em um pequeno hospital, também, com todas as suas deficiências…
Foram seis longos anos que vivi intensamente as mais críticas e inusitadas situações que um jovem médico recém-formado poderia imaginar… Felizmente, estava bem preparado, caso contrário, teria desistido logo nos primeiros meses.
Estava preparado, pois sempre fui um aluno dedicado, e, principalmente, por ter passado o sexto ano no Hospital Presidente Dutra, após ser aprovado em seleção bastante concorrida, pois só ficaram 25 alunos dos 120 que iriam se formar. Naquele ano 1975, no Hospital Dutra, atendiam-se todas as especialidades com uma equipe de profissionais da saúde que se destacava como a melhor daquela época.
Permita-me, caro leitor, em continuar este preâmbulo narrando alguns momentos da minha profissão como médico interiorano. Obviamente, não vou citar todos os casos, pois seria enfadonho e fugiria ao tema a que me propus abordar. No interior dissequei veias de recém-nascidos para salvá-los de desidratação, fiz também várias apendicectomias, hernioplastias, cesarianas. Operei uma criança de dois anos, que caiu de cima de uma mesa, onde brincava com uma garrafa vestida de boneca. Ela chegou ao hospital com as alças intestinais expostas, após ter caído por cima da “boneca.” Fiz tudo sozinho, sem anestesista e sem ambulância para transportá-la para capital.
Entretanto, ao meu lado estava uma auxiliar de enfermagem – Maria Freire – uma senhora iluminada e experiente, que me acompanhou como um anjo guardião em todas as situações críticas que vivenciei.
Foi lá, nessa pequena cidade, que aprendi a orar. É isso mesmo, além de trabalhar muito e estudar para não ficar desinformado, orava sempre para que eu fosse ajudado a salvar os doentes graves, uma vez que suas vidas dependiam, em parte, da minha correta intervenção.
Poderia continuar com muitos outros casos, mas vou encerrar com uma inusitada situação: um vaqueiro de próspero fazendeiro, por volta das 22 h de um dia que se registra na memória e se perde no calendário, procurou-me desesperado, porque a vaca da sua cria estava em trabalho de parto desde as 8 h da manhã daquele dia. Ele, simplesmente, desejava que eu fizesse o parto e salvasse o bezerrinho(a) que, ao nascer, seria de sua propriedade. Após ouvir a narrativa do vaqueiro, eu sorri irônico, respondendo, imediatamente, que não era veterinário, aliás, acentuei: nunca cheguei perto de uma vaca, quanto mais fazer um parto… Eu pensei – dessa me livrei… No entanto, qual não foi a minha surpresa, quando, após a minha negativa – o vaqueiro ajoelhou-se e pediu: doutor, pelo amor de Deus, salve o meu bezerrinho, eu já tinha prometido dar de presente de aniversário ao meu filho, que vai fazer cinco anos.
Que situação eu estava vivenciando!… Orei e uma energia afagou-me, eriçando os pelos dos meus braços. Segurei o vaqueiro forçando-o a ficar de pé. E, para sua imensa alegria, disse a ele: vamos ver a vaca…
A noite estava enluarada e o céu cheio de estrelas, a brisa acariciava o meu rosto como se quisesse me acalmar, afinal, eu estava me dirigindo para uma situação inédita. Na verdade, não sabia nem mesmo o que eu iria fazer. Durante o percurso a pé, comecei a conversar com o vaqueiro que, agora, saltitava de alegria. Perguntei como era um parto normal de uma vaca. Ele respondeu-me: “as duas patinhas ficam debaixo do focinho do bezerro e ele escorrega para fora.” Era a minha primeira e única aula de veterinária…
Depois de cerca de vinte minutos de caminhada chegamos ao local. A vaca, visivelmente exausta, não conseguia mais nem uma pequena contração. O que fazer? Pedi ao vaqueiro que fosse rápido ao hospital e trouxesse um par de luvas e seis ampolas de orastina – um hormônio da musculatura lisa do útero, também chamado oxitocina – usado para indução do parto em gestantes. Em gestantes, nunca foi necessário mais de duas ampolas em 24 h, por isso achei que seis resolvesse o problema.
Esperei uns trinta minutos, mas não havia qualquer sinal mesmo que fosse de uma pequena contração. O que se passou logo a seguir me demonstrou que nem orastina, tampouco um par de luvas de nada serviriam. Resolvi, então, examinar o problema. E, mãos à obra… Segundos após, o meu braço direito já estava todo, literalmente, dentro da vaca em busca do bezerro e as suas patas.
Bem, a cabeça do bezerro estava em posição, a pata esquerda também, mas onde estava a pata direita? A procura não demorou, ela estava virada para trás, eis a causa que impedia a conclusão do parto. Então, teoricamente, eu teria apenas de virar a pata para frente, colocá-la debaixo do focinho e tudo estaria resolvido.
A prática, no entanto, não se revelou tão fácil quanto a teoria, porque ao alcançar a pata do animal, e forçar para trazê-la para a posição correta senti que poderia haver uma fratura. E agora? O que fazer? – Fechei os olhos, respirei fundo várias vezes e comecei a minha oração. Assim, permiti que a minha intuição me conduzisse para a conduta certa. Em alguns minutos o bezerrinho escorregou para fora – nasceu sem problemas, ficando, imediatamente sobre as quatro patas. Contive as emoções de alegria…, o vaqueiro não sabia se chorava ou sorria…
Eu me sinto um privilegiado por ter vivenciado duas épocas distintas da medicina em minha vida profissional. Em primeira etapa, exercida com a escassez de recursos técnicos, mas a relação médico-paciente assumia uma importância vital.
Após seis anos no interior do estado fui para o Rio de Janeiro fazer pós-graduação. Iniciava-se uma experiência completamente nova. Foram três agradáveis e produtivos anos. Também, no Rio, tenho casos para narrar, entretanto, ficará para outra oportunidade.
A prática médica ao longo das últimas décadas sofreu radicais mudanças em função do rápido e significativo avanço tecnológico na área dos diagnósticos: a Biologia molecular, o Petscan, a Ressonância Magnética, os Endoscópios, o advento da informática…
Avançamos em tecnologia, mas nos afastamos dos doentes, mudamos a história natural do relacionamento médico-paciente, porque a anamnese minuciosa e o exame físico criterioso foram substituídos pela fria solicitação de exames, exames e mais exames…
Mais preocupante ainda, foi surgimento da intermediação do trabalho médico,ou seja, os planos de saúde…, trazendo um agravante para os dois lados desse relacionamento.
É necessário compreendermos que nos ângulos do triângulo que exemplifica um ato médico estão: o médico, o paciente e a doença. E, assim, como é impossível pensar em um ato médico que não esteja embasado nos princípios da bioética; da mesma forma é impossível ignorar o paciente como figura central desse relacionamento.
Todo doente, fragilizado pela doença, espera do médico apoio e proteção. O paciente, até aceita as nossas limitações, jamais a nossa indiferença.
Segundo o Dr. Eustáquio Portela: “Os grandes médicos de todos os tempos são observadores agudos das emoções humanas.” Mas, para mergulharmos no entendimento destas emoções, a condição sine qua non nos recomenda fazermos uma viagem interior para reeducarmos os nossos sentimentos – é a busca do autoconhecimento.
Os médicos, portanto, devem estar conscientizados, que tão eficaz quanto o medicamento prescrito sob a fria ótica dos resultados dos exames solicitados é a ação verdadeiramente terapêutica gerada pelo relacionamento médico-paciente, onde se estabeleceu a empatia – que é uma das características mais importantes dos grandes profissionais…
Para uma prática médica cada vez mais salutar e eficaz, é de suma importância que a capacidade de empatia do médico seja vivenciada de forma plena com o paciente, em todos os momentos da consulta clínica. Portanto, enfatizo que o relacionamento médico-paciente com base na empatia tem alcance significativo e benéfico no processo terapêutico.
Um profissional brilhante é portador de harmonia de sentimentos, serenidade e generosidade, arte e ciência. Eis o seu grande diferencial. Vale a pena lembrar a principal diferença entre ciência e arte: a ciência lança mão exclusivamente da razão, enquanto a arte, além de recorrer à racionalidade, permite o aflorar de sentimentos, empatia, simpatia, carisma e intuição.
O convite aos colegas de profissão é a Humanização da Medicina, que deve ser dirigido a todos os profissionais de saúde, mas principalmente, aos professores nas Universidades e demais responsáveis pela educação e gestão dos Sistemas de Saúde.
Obviamente, não estou querendo insinuar que os médicos são desumanos!… Não desejamos é que alguns mercenários maculem a imagem de médicos dedicados, honestos e competentes.
O que realmente quero expor não é a ferida, mas a ação curativa – é o porquê da fragilidade da relação médico-paciente.
Houve uma transformação no ato médico, pois a maioria dos profissionais passou a  raciocinar somente com os exames complementares para diagnosticar a doença, em detrimento do doente. O doente que outrora era avaliado como um todo, a cada dia, foi diminuindo e avaliado como rins, estômago, coração, olhos, fígado, joelho, mão… A verdade é que adotamos uma postura mecanicista com tendência materialista!… Muitos profissionais perderam até o respeito pelo paciente, ao ponto de ignorarmos o nome do doente que, infelizmente, passou a ter várias denominações: o safenado do leito 38, o cirrótico da UTI, o leito 52, o tumor hepático, o pé podre!…
O que aconteceu? – Acontece que fomos perdendo a arte da medicina e endeusamos apenas a ciência, a tecnologia mecanicista e fria e nos distanciamos do doente.
Relembremos: a maioria dos profissionais, ao escolher a medicina como profissão, tinha como ideal servir e salvar vidas. Logo, o humanismo é inato à profissão médica. “Um médico sem humanismo não será propriamente médico. Na melhor das hipóteses trabalhará como um mecânico de pessoas.” (1). O que é lamentável…
Bibliografia:
(1) O Mundo da Saúde, São Paulo: 2010.