O Presente de Gregório

11 de Outubro de 2018 2 Por JORGE Baldez

                                    O presente…
Havia anos ele sonhara em estudar e formar-se em medicina. Aos 6 anos costumava brincar com a sua irmãzinha menor – o seu papel principal era ser médico, bem diferente aos 3 anos, quando a sua rechonchuda maninha acabará de nascer e um ciúme nublou o seu sentimento infantil a ponto de subir no berço para pisoteá-la em sinal de protesto por ela surrupiar, a partir de então, todas as atenções dos familiares. E, não fosse o eletromagnetismo do amor de mãe, atraí-la ao berço da recém-nascida de três meses para ver se tudo ia bem, pois coração de mãe não se engana; e, um silêncio estranho estava permeando o ambiente…, certamente uns bons hematomas ele teria causado na pequenina…
Para falar a verdade alguns anos após esse pequeno incidente a cena agora vivida entre os dois irmãos comovia pela inocência e beleza…! e lerdeza acrescentava a irmã já adulta. Os dois compondo-se com as suas roupinhas simples, bem zeladas tornavam-se motivo de risadas quando o quase agressor calçava as meias e os sapatinhos sempre trocados: os do pé direito no pé esquerdo e vice-versa. Sempre  socorrido carinhosamente pela quase vítima do atentado, que pacientemente vestia as meias e calçava o seu irmão.
O pequeno doutor das bonecas não sabia nem compor-se…, mas os olhos vislumbravam sempre o futuro, não importavam as dificuldades de toda sorte, o que realmente ele queria era ser médico, cuidar dos doentes, aliviar o sofrimento, ter um consultório e tratar as pessoas.
Sonhos à parte o tempo não passava assim tão célere, mas lento, muito lentamente…, na sua pequena impressão infantil. Já adulto iria compreender que não temos a mínima noção do que seja “agora” e que nada sabíamos sobre o tempo. Dizem que cada pessoa tem dentro de si um sonho — especial para cada um, mas que nem sempre somos capazes de torná-lo realidade, porque muitos fatores conspiram para se construir uma vida; o destino de um homem nem sempre é expressão do seu desejo…
Entretanto, o destino conspirou a seu favor e o sonho tornou-se realidade, agora — Dr Fagundes. Tivera um bom desempenho universitário, boas notas, perseverante e interessado em aprender sempre, mais e mais…, em cada área específica dedicava-se como se fosse fazer a especialidade, portanto tinha uma formação geral bem sólida, pois, diferentemente dos seus colegas, não desejava ir logo após a formatura fazer residência ou curso de especialização, afunilando seus conhecimentos. Ele desejava praticar a clínica geral junto às pessoas pobres, sem recursos e excluídas dos tratamentos nas capitais, depois, então quem sabe…
Assim, logo após o juramento e receber o canudo teve uma proposta para trabalhar no interior do estado…Finalmente, o dia da mudança  — que não seria apenas sair da capital para o interior, ia mais além, muito além — dando asas aos seus pensamentos e lembranças, enquanto arrumava seus pertences. Era uma mudança radical de vida: sair do seu conforto, seu quarto, sua cama, a estante com seus livros, a comidinha da mãezinha. Ia sentir falta até do jogo de xadrez com os amigos nos finais de semana. Ir ao cinema ou mesmo comer uma pizza. Imaginava o que faria à noite, após encerrar os atendimentos no pequeno hospital daquela cidadezinha…
Enfim, temia os momentos de solidão… Os pensamentos bailavam num vai e vem, velozes como um raio iluminando a escuridão em noite de tempestade. Ora ele sorria, ora lágrimas teimosas rolavam pela face até embrenharem-se na sua espessa e bem aparada barba.
Com uma bagagem tão grande de incertezas; levava consigo também alguma certezas frutos da educação de seus amados pais: nem uma vida é mais importante do que a outra e um dia quando superarmos nossas deficiências vamos todos viver como verdadeiros irmãos; e, as circunstâncias da vida podem tirar nossas posses materiais e saúde, mas nada pode tirar as nossas posses mais valiosas: nossa educação e nossas lembranças, que são alicerce e tijolos que constroem o edifício da vida.
Após percorrer uma precária estrada sem asfalto, ladeada tanto à sua margem direita quanto esquerda por casebres de chão batido com árvores frutíferas, patos, galinhas e porcos que certamente faziam parte do sustento das famílias chegou ao final: a entrada da cidade — uma praça poeirenta sem atrativos e sem calçamento, onde destacava-se de um lado o açougue e do outro um comércio com uma placa – Sr. Honório Café. Ali naquela praça, como soube mais tarde — armava-se às quintas-feiras uma feira com uma variedade de grãos, verduras, legumes produzidos nos povoados. Tecidos e roupas de ambulantes. Porcos, cabritos e aves dos pequenos criadores da região. Além de uma considerável quantidade de pessoas que vinham em busca de atendimento médico.
Bem, agora restavam três opções: seguir em frente, nas ruas que se apresentavam: uma à direita e outra à esquerda. Seguindo em frente estava a escola Chico Freire e o cartório do Nhozinho Serra; à esquerda uma rua longa onde se localizava a delegacia, a coletoria e a casa do prefeito. Nessa mesma rua havia o Posto de Atendimento do município, uma praça bem cuidada, arborizada e o prédio da prefeitura. Ao final da rua à direita a casa paroquial e o pequeno Hospital do Padre, onde ele iria iniciar o exercício de sua profissão. Naquelas ruas desfilavam as autoridades: Prefeito, Delegado, Coletor e o Padre.
O Hospital do Padre, como era conhecido, ficava em frente de um campo verdejante, circundado por casas de alvenaria bem cuidadas. A igreja bem ao centro daquele campo e, em frente, um belo mangue que durante o inverno enchia e tornava-se produtivo com uma pesca farta, permitindo que canoas flutuassem em seu leito facilitando o acesso a alguns povoados ribeirinhos; durante o verão secava, assim, carroças e cavalos serviam de transporte aos povoados e fazendas. Em noite de luar aquele lugar era verdadeiramente encantador…!
Durante os primeiros dias de trabalho conheceu o Sr. Benedito — um “dôto do mato” que tratava tudo com Benzetacil e garrafada que só ele sabia o preparo. Ele procurou o Dr. Fagundes sondando-o para saber como se tratava “tiriça” e “escorrimento de mulher”. Era um sujeito de bigodinho fino, meia estatura, sorriso falso, fala mansa — na avaliação do Dr. Fagundes ele não era confiável, portanto com toda educação fez questão de explicar , usando todos os termos médicos e científicos, o que resultou no dito pelo não dito, ou seja, o seu interlocutor não entendeu patavina como se diz no popular. Não demorou muito para o Dr. Fagundes receber os mal feitos do “dôto do mato”.
Superado os primeiros obstáculos, o trabalho intenso do dia a dia — e, num piscar de olhos já havia se passado 3 anos. O Dr. Fagundes já tinha conquistado a confiança e o respeito da maioria das pessoas da cidade de Pouso Alegre. Os que não consultavam com ele eram os adversários políticos, não dele, que não se envolvia em política, nem tampouco tomava partido do padre, do prefeito ou do “Coroné” Nerson adversário dos dois; ao médico em pleno exercício não é ético fazer política – não sou nem pretendo ser político — dizia sempre o Dr. Fagundes aos seus interlocutores que sempre vinham solicitar a sua participação partidária.
Além da política o que mais o incomodava eram as mulheres: jovens casadoiras, viúvas, quarentonas e algumas casadas… Ele continuava convicto da sua solteirice, embora, uma e somente uma fizesse o seu coração bater acelerado. Ela costumava passar todos os dias ao entardecer, no mesmo horário que ele encerrava o atendimento clínico, até parece que ela tinha uma informante — muita coincidência — dizia baixinho. Ela devia ter uns dezenove anos, morena, 1,70 m, corpo escultural: pernas, quadril e seios estonteantes !– boca carnuda e sensual, olhos verdes, cabelos negros, lisos e longos caprichosamente em cima do seu seio direito numa tentativa de encobrir o ousado decote do vestido longo que emoldurava o seu corpo; os cabelos brilhavam e estavam presos por um largo prendedor prateado. Na orelha direita pendia uma bela argola com os mesmos tons prateados do prendedor de cabelos, enquanto do lado esquerdo a sua orelha estava encoberta por seus cabelos negros. Margeando o decote do vestido uma renda trabalhada e tão alva que contrastavam a sua pele morena, acentuando ainda mais, parte dos seus seios. Parece até que ela estava nua, porque ninguém prestava atenção no seu vestido – apenas davam asas imaginando o que ele estava encobrindo… Só o Dr. Fagundes, por ser perfeccionista percebia, os detalhes do seu vestido amarelo. Não é uma mulher, é uma deusa! –exclamavam ao vê-la. Ela mexia com todos os homens…, e, deixava as mulheres apreensivas por seus namorados e maridos. Até o padre dava as suas olhadelas o que não era novidade, pois era voz corrente que ele tinha um “causo” com a dona da pensão em frente à casa paroquial. Muitos juravam já ter visto uma mulher vestida de branco – Dona Margarida — entrar na casa paroquial por volta da meia noite, geralmente, às sextas-feiras. O que provocava comentários na praça do mercado na manhã de sábado – “A alma penada do padre foi pedir missa ontem à noite” — gargalhadas dos fofoqueiros.
Durante as noites de insônia Dr. Fagundes ficava a relembrar as veias dissecadas dos recém-nascidos desidratados, apendicectomias, as hernioplastias e cesarianas. Lembrou-se de um pai desesperado trazendo nos braços a filha de 3 anos com as alças intestinais expostas – a criança caiu de cima de uma mesa, onde brincava com uma garrafa vestida de boneca. Caiu por cima da “boneca”.      Continua – 2ª parte.