O Presente de Gregório (2ª parte)
Em uma quinta-feira, dia da grande feira, um lavrador que vinha fazer compras ao atravessar uma área de mangue encontrou um jacaré e, ao invés, de seguir o seu caminho foi espantá-lo com uma vara. O jacaré mais rápido, simplesmente, descarnou completamente um dedo do homem, ficando somente a estrutura óssea limpinha do polegar, da mão direita, restando ao Dr. Fagundes apenas a desarticulação e sutura. O mais inusitado foi constatar os sorrisos do caboclo – como se nada lhe tivesse acontecido!
O médico lembrou-se ainda de um vaqueiro de próspero fazendeiro, por volta das 22 h de um dia que se registra na memória e se perde no calendário, procurou-lhe desesperado, porque a vaca de sua cria estava em trabalho de parto desde as 8 h da manhã daquele dia. Ele, simplesmente, desejava que este fizesse o parto e salvasse o bezerrinho(a) que, ao nascer, seria de sua propriedade. Ao que imediatamente respondeu-lhe: eu não sou veterinário. E mais: nunca cheguei perto de uma vaca, tampouco fazer parto…, certo que o vaqueiro iria desistir e providenciar outra solução, no entanto, para surpresa dele o vaqueiro ajoelhou-se e implorou: pelo amor de Deus, salve meu bezerrinho, eu prometi dar de presente de aniversário ao meu filho, que vai fazer cinco anos. Segurando o vaqueiro pelo braço forçando-o a ficar de pé. E, para sua imensa alegria, disse-lhe: vamos ver a vaca.
A noite estava enluarada e o céu cheio de estrelas, a brisa acariciava o seu rosto como se quisesse acalmá-lo, afinal, ele estava se dirigindo para uma situação inusitada e inédita. Na verdade, não sabia nem mesmo o que iria fazer. Durante o percurso a pé, começou a conversar com o vaqueiro que, agora, saltitava de alegria. Perguntou como era um parto normal de uma vaca. — O vaqueiro respondeu: “as duas patinhas ficam debaixo do focinho e ele escorregava para fora.” Foi a sua primeira e única aula de veterinária…
Depois de cerca de vinte minutos de caminhada chegaram ao local. A vaca, visivelmente exausta, não conseguia mais nem uma pequena contração. O que fazer? Pediu ao vaqueiro que fosse ao hospital e trouxesse um par de luvas e seis ampolas de orastina (oxitocina) — um hormônio da musculatura lisa do útero, usado para indução do parto em gestantes — duas ampolas em 24 h resolviam a situação, por isso achou que seis ampolas resolveriam o problema de contração da vaca… Esperou uns trinta minutos, mas não havia qualquer sinal mesmo que fosse de uma débil contração. O que se passou logo a seguir deixou claro que nem a orastina, tampouco um par de luvas de nada serviram… Resolveu, então, examinar o problema. E mãos à obra… instantes após o seu braço direito já estava todo, literalmente, dentro da vaca em busca do bezerro e as suas patinhas.
Bem, a cabeça do bezerro estava em posição, a pata esquerda também, mas onde estaria a pata direita? Encontrou-a, finalmente, após alguns minutos de fervorosa oração recitada no silêncio dos seus pensamentos. A patinha direita estava virada para trás, eis a causa que impedia a conclusão do parto. Portanto, teoricamente, ele teria apenas de virar a pata para frente, colocá-la debaixo do focinho e tudo estaria resolvido…
A prática, no entanto, não se revelou tão fácil quanto a teoria, porque ao alcançar a pata e tentar trazê-la para a posição correta percebeu um grande risco de fratura. E agora? O que fazer? Deve ter alguma manobra segura… Fechou os olhos, inspirou fundo e expirou lentamente várias vezes e começou a sua oração de socorro… Em um lapso de tempo, que o médico não pode registrar com os seus sentidos naturais — foi como se Dr. Fagundes tivesse um momento de ausência e, logo em seguida ali estava a patinha direita no seu devido lugar – então, e somente então, viu o bezerrinho escorregar para fora sem problemas, ficando imediatamente sobre as quatro patas. Ele conteve a emoção…, o vaqueiro não sabia se chorava ou sorria,,,
Foi para o seu quarto na pensão da Dona Margarida e dormiu como há muito tempo não dormia…
Rapidamente espalhou-se pela cidade que o dôto fez o parto de uma vaca e salvou o bezerrinho… Logo pela manhã no dia seguinte uma pequena fila aglomerou-se na porta da hospedaria: um porco, um gato e uma cabra o aguardavam para consulta, entretanto, Dr. Fagundes foi rápido em sua decisão pegou uma tranca de madeira atrás da porta empunhou-a, fez cara feia e botou os três animais com seus respectivos donos para correr – foi hilário, até mesmo cômico, mas necessário — um aviso para outros aventureiros não aparecerem…
Dr. Fagundes fez um balanço positivo do seu trabalho, após três anos… Entretanto, dormir era necessário, pois um número elevado de pacientes estariam no dia seguinte a partir das 7 h da manhã… E, como previra, a quinta-feira foi bem cansativa. Foi nesse dia que o Dr. Fagundes conheceu o personagem deste despretensioso conto — Sr. Gregório. De uma estatura que destoava dos demais habitantes da cidade, pois tinha 1,80 m, pele branca queimada pelo sol, esguio, cara lisa, cabelos crespos, sua magreza realçava sua pernas que pareciam “pernas de pau”; sorriso fácil, bem humorado. Entretanto, ele carregava algo desagradável e que dificultava até o seu caminhar — uma volumosa hérnia inguinal ou inguino-escrotal um pouco maior que uma bola de futebol cheia, que inevitavelmente fazia todo um bailado entre as suas longas pernas, enquanto Gregório andava. Tinha-se um misto de pena e agonia só de vê-lo carregar aquela mazela desconfortável e que lhe deu um sobrenome nem um pouco agradável de ouvir — Gregório”culhão”.
Ele recusava de forma irrevogável submeter-se à cirurgia — impedido por um medo irracional… Portanto, preferia carregar aquele fardo inconveniente mesmo sendo ridicularizado…
Quando entrou pela primeira vez no consultório do Dr. Fagundes ele bateu o recorde da maior hérnia já vista pelo médico. Este indicou-lhe imediatamente cirurgia e perguntou quando estaria disponível para internação hospitalar – Gregório sorriu e disse: Estou aqui por outro motivo dôto… A minha mãezinha com 94 anos e no fundo da rede há 4 anos queixa-se de uma dor que não passa. Vim pedir ao bom dôto para ir ao meu povoado consultar a minha velha mãe… O Dr. Fagundes fez uma variedade de perguntas, pois ainda não tinha se afastado para fazer atendimento em qualquer povoado nos arredores da cidade: qual a distância, o nome do povoado, qual o transporte o levaria, quanto tempo para chegar ao povoado, enfim acertaram o dia e todos os detalhes.
Na terça-feira combinada o Sr. Gregório bateu exatamente às 4:30 h da manhã na porta da hospedaria da Dona Margarida. Dr. Fagundes montou pela primeira vez em cavalo manso, conforme o prometido. E lá se foi a pequena caravana rumo ao povoado Enseada Grande que ficava a cerca de 2 h. Atravessaram o centro da cidade e alcançaram uma pequena comunidade último bairro antes de embrenharem-se por estreita viela margeada de vegetação, árvores nativas, frutíferas; venceram pequenas barreiras, alagados, riachos. Ora a vegetação encobria a luz do sol, ora deixava que seus raios iluminassem os integrantes da caravana que era conduzida por Zé Pixuta vaqueiro e uma espécie de faz tudo… Logo atrás Gregório, depois o Dr. Fagundes e os dois últimos da fila indiana eram os filhos do responsável pela caravana.
Foram duas longas horas até alcançarem a porteira da propriedade. Desmontando-se e sem perda de tempo o médico foi ao encontro da paciente. Examinou-a cuidadosamente e não constatou nada grave, apenas processo senil em curso e já desfrutando seus últimos dias conforme a vontade do Senhor…
Bem, pensou vou ficar mais um pouco e sem demora retorno para o hospital. Sentou-se para descansar um pouco quando foi chamado para falar com Gregório que o esperava lá fora no terreiro. Qual não foi a surpresa do Dr. Fagundes quando deparou-se com uma fila de pessoas que serpenteava todo o terreiro e até fora dele lá dentro do mato. Calculou aproximadamente umas 80 pessoas. Boquiaberto, olhou para o responsável pela armadilha, que veio sorrindo em sua direção — “Meu querido dôto para o sinhô dá uma olhada na parentada aqui de perto”… Diante de tal situação não perdeu tempo, nem argumentou nada e mãos à obra… Por volta das duas horas da tarde atendeu o último paciente.
Após o almoço que foi rápido, pois tinha pressa para voltar e atender os pacientes que o aguardavam no hospital. Gregório apresentava um semblante de satisfação, afinal de contas não era todo dia que um médico vinha na sua casa consultar a sua mãe idosa e, de sobra, toda a sua parentada — apenas 92 pacientes. E mais: de graça sem gastar um centavo. Então para agradar Dr. Fagundes resolveu lhe recompensar, afinal de contas era mais que merecido… Empostou a voz, chamou Pixuta e ordenou que ele pegasse aquele galo para dar de presente ao dôto — “aquele galo!” — então, já havia escolhido, portanto, imaginou o Dr. Fagundes —deveria ser um galo especial…
Foi uma experiência que o Dr. Fagundes esqueceria jamais, não contaria para o curriculum, mas ficaria eternamente incorporada à sua vida profissional e as suas lembranças — os tijolos que constroem a vida conforme os ensinamentos dos seus estimados pais.
Uma semana se passou — o Dr. Fagundes lembrou-se do presente de Gregório – o galo. Ele pediu a Dona Margarida que o preparasse no capricho: metade assado e a outra metade ao molho pardo e foi trabalhar saboreando antecipadamente o seu petisco. Quando em vez ele lembrava que após o expediente lhe esperava uma apetitosa refeição — por vezes, sentia até o cheiro da comida e salivava como um lobo faminto… Continuava trabalhando sempre embalado pela sensação da deliciosa refeição… Entretanto, uma notícia preocupante estava bem próxima, sem que ele sequer imaginasse… O filho da cozinheira da pousada de Dona Margarida — Zequinha “Pereba” chegou ao hospital ofegante querendo falar com o Dr. Fagundes –Dôto, Dôto, mamãe mandou dizer que o galo de Gregório está na panela com fogo alto das 8 às 12 h e não amoleceu tá todo duro. Ela disse que é “galo velho”… Ela mandou perguntar se pode preparar outra comida para o almoço e deixar o galo velho na panela para ver se amolece para o jantar—Dr. Fagundes ficou pálido – relembrou o dia do atendimento, a dedicação, o cansaço… A falta de consideração de Gregório escolhendo o galo mais velho que tinha no terreiro, sabendo que ele não ia amolecer nem na boca de um vulcão em erupção… Da sua testa começou rolar um suor gelado – um misto de fome, raiva e decepção por ter sido tão vilmente ludibriado. Lembrou da empáfia de Gregório ordenando Zé Pixuta pegar “aquele” galo para dar de presente ao dôto… Agora e somente agora o Dr. Fagundes se deu conta do conto do vigário que ele tinha caído. O presente de Gregório.
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