O Médico, a paciente e o beijo

13 de Dezembro de 2018 0 Por JORGE Baldez

                                  Quando aquele jovem médico ouviu pela primeira vez comentários sobre a fé, o poder da fé e a fé transporta montanhas ficou confuso e sem entender de que maneira, algo abstrato poderia, transportar o material de toneladas de uma montanha. Era uma impossibilidade…! Somente anos depois, no afã de definir sua formação religiosa; motivado principalmente, pela busca de esclarecimentos e explicações, ele foi surpreendido quando do encontro com a Doutrina Espírita, através dos livros de André Luiz psicografados por Chico Xavier – um relato sobre: A vida no mundo espiritual…
Encontrei, enfim, o caminho a luz — pensou ele com entusiasmo. E no dia do seu primeiro Evangelho no Lar ficou em êxtase, pois ao abrir a esmo O Evangelho segundo o Espiritismo, deparou-se com o capítulo XIX intitulado: A Fé transporta montanhas. No transcorrer da leitura deu-se conta de como ele se equivocara com a interpretação — as montanhas estavam ali no texto com o sentido moral e não material — ele sorriu da sua ingenuidade…! As montanhas que a fé transporta são as dificuldades, as resistências, a má vontade, o preconceito, o interesse material, o egoísmo, a cegueira do fanatismo, as paixões e tantas outras montanhas, que dificultam os nossos passos, obstruindo o caminho e dificultando o progresso da Humanidade.
“A realidade é que a fé nos dá uma espécie de lucidez e permite que se veja, em pensamento, a meta que se quer alcançar e os meios de chegar lá…” Então, um bocejo o avisou que o sono chegara — era hora de dormir…Ele há alguns anos ao recolher-se à noite, depois de um longo dia de trabalho adquirira o hábito de fazer uma retrospectiva do seu dia e de relembrar fatos passados que lhe viessem à mente… Ele lera um dia que Santo Agostinho adquirira esse hábito com a finalidade de se tornar um homem melhor, corrigindo seus erros dia a dia.
É óbvio que aquele personagem não possuía nada de santo, místico ou excêntrico; ademais, a sua cultura espiritualista não era suficiente para estruturar grandes argumentações. Entretanto, tinha a espontaneidade, simplicidade para aprender e a vontade robusta, que lhe dava a esperança de tornar-se um homem de bem no futuro… É certo, ainda muitas dúvidas povoavam sua mente que mesmo os expertises no assunto espiritismo não eram capazes de esclarecê-lo. De igual modo os expertises da música clássica, quando questionados com a incômoda pergunta: Quem é maior, Verdi ou Wagner? — Alguns disseram que Verdi era um iluminista capaz de despertar através da sua música valores como a fraternidade; enquanto, outros afirmaram que Wagner era o compositor favorito dos nazistas, exigindo do ouvinte uma embriaguez opiácea devido a longa duração das suas músicas. Bem, é melhor usar a prudência de Mario de Andrade ao responder a pergunta e encerrar o assunto: “Não se mede altura entre altíssimos.”
Contudo, havia dentro de si a ferrenha determinação em não se transformar em uma figueira seca, conforme a parábola citada por Jesus ao sair da cidade de Betânia. Assim, foi a sua estante e apanhou o Evangelho segundo o Espiritismo, a fim de reler o texto que tanto gostava: “A figueira seca é o símbolo das pessoas que apenas aparentam o bom, mas na realidade nada produzem de bom; símbolo das pessoas que podem ser úteis e não o são; dos oradores que são hábeis com as palavras que agradam aos ouvidos; mas, vazias, sem substância, sem nenhum proveito para os ouvintes. São sistemas e doutrinas sem bases sólidas, que serão reduzidas a nada, por nada produzirem de bem para a Humanidade.”
Lamentou, consigo mesmo, pois conhecia um número expressivo de profissionais da medicina que não tinham conhecimento dessa parábola, tampouco estavam preocupados em fazer o bem ou mesmo tornarem-se homens de bem. Entristeceu-se até mesmo pelo seu desconhecimento religioso, logo no início do exercício de sua profissão.
Ele relembrou que viveu uma época de pouca tecnologia, tempo em que o médico para fazer um diagnóstico necessitava de bom conhecimento clínico; fazer uma boa anamnese; um exame físico minucioso; experiência e uma boa intuição. Entretanto, a prática médica ao longo das últimas décadas sofreu radicais mudanças em função do rápido e significativo avanço tecnológico na área dos diagnósticos: a Biologia Molecular, o Petscan, a Ressonância Magnética, os Endoscópios, o advento da informática.
Os avanços em tecnologia, gerou um afastamento dos doentes, uma vez que foi sendo mudada a história natural do relacionamento médico-paciente, porque a anamnese e o exame físico criteriosos foram  substituídos pela fria solicitação de exames e mais exames… Ele, por experiência própria de um médico atencioso e humanista, sabia que todo doente fragilizado pela doença espera do médico atenção, apoio e proteção. O paciente, até aceita limitações, jamais a indiferença. “Os grandes médicos distinguiram-se ao longo do exercício de suas profissões, porque foram exímios observadores das emoções humanas.”
Os médicos, portanto, devem estar conscientizados de que tão eficaz quanto o medicamento prescrito sob a fria ótica dos resultados dos exames solicitados é a ação verdadeiramente terapêutica gerada pelo relacionamento médico-paciente, onde se estabeleceu a empatia — que é uma das virtudes mais importantes dos grandes profissionais…
Uma prática médica é tanto mais eficaz, quanto mais vivenciada for a empatia em todos os momentos da consulta clínica; assim e somente assim, o relacionamento médico-paciente terá um alcance significativo e benéfico no processo terapêutico.
O personagem aqui referido já tinha experimentado, em sua vivência clínica, a medicina sem tecnologia e, agora, a medicina com tecnologia, buscou espiritualizar as suas atitudes, melhorar seu relacionamento médico-paciente e sabia, mais que nunca que a serenidade, generosidade e harmonia de sentimentos eram valores fundamentais. O grande diferencial de um profissional brilhante era o manejo sublime da arte e da ciência: a ciência — dizia ele, lança mão exclusivamente da razão, enquanto a arte, além de recorrer à racionalidade, permitia a empatia, simpatia, carisma e intuição.
Desejava, tão somente convidar os colegas de profissão, ou seja, todos os profissionais de saúde, sem exceção, principalmente professores nas Universidades e demais responsáveis pela educação e gestão dos sistemas de saúde para a questão da Humanização da Medicina. Obviamente, não estava insinuando quanto a médicos despreparados e desumanos!… O que ele desejava não era expor a ferida, mas a ação curativa — são os porquês da fragilidade da relação-médico-paciente. Ele detestava quando alguns mercenários maculavam a imagem de médicos dedicados, honestos e competentes.
Entristecia-se quando presenciava a carência dos doentes que outrora eram avaliados como um todo e, ao longo do tempo, na era tecnológica foram diminuídos e avaliados como rins, estômago, coração, joelho, mão… A verdade é que a medicina adotou uma postura mecanicista com tendência materialista!… Muitos profissionais perderam até o respeito pelos pacientes, ao ignorarem o nome do doente que, infelizmente, passou a ter várias denominações: o safenado do leito 38, o cirrótico da UTI, o leito 52, o tumor hepático, o pé podre!…
Lamentavelmente, ele reclamava em seu solilóquio: A arte da medicina está em apuros e seduzida pela tecnologia mecanicista,  fria o que fez com que houvesse a perda da arte do relacionamento medico-paciente, distanciando-se cada vez mais dos doentes. Assim, no final de mais um dia, lembrou-se de uma de suas frases favoritas: “Um médico sem humanismo não será propriamente médico. Na melhor das hipóteses exercerá a sua profissão como um mecânico de pessoas.”
Ao acordar para um novo dia de trabalho, que já imaginava longo e exaustivo, voltaria a encerrar ao final do dia, no seu modesto consultório… No consultório, lavou o rosto, ajeitou a cabeleira já com algumas mechas encanecidas, fez um breve exercício respiratório. Sentou-se arrumou a sua mesa, fechou os olhos fez sua habitual oração em seguida sinalizou, à sua secretaria que encaminhou o primeiro paciente. A tarde se fez noite, despediu-se do sol e a lua assumiu pontualmente o seu turno, presenteando o planeta com a sua beleza. Já estava prestes a atender ao último paciente, quando sua secretaria foi avisá-lo que o próximo e último paciente era uma criança especial de 10 anos, acompanhada por sua mãe.
Ele só fazia clínica de adultos, mas a referida mãe insistiu tanto e como a secretaria tinha orientação para não deixar ninguém voltar do consultório sem atendimento…, logo em seguida a criança e sua mãe ali estavam à sua frente. A mãe era uma senhora franzina envelhecida pelo sofrimento, olhar de tristeza e facies de ansiedade… Quanto à criança  ao primeiro momento parecia aos olhos do clínico um pequeno “monstrinho”. Respirou profundamente e recitou mentalmente uma oração para afastar-lhe aquela impressão negativa — era uma criança desnutrida, magra, cabelos descompostos com o dedo polegar direito na boca, facies sugestiva de síndrome de Down, orelhinhas de abano e um Ectrópio congênito no olho direito (ectrópio é uma condição em que a pálpebra vira para o exterior, deixando a superfície interna exposta).
A criança sentou-se e enrolou-se em cima da cadeira assumindo uma postura fetal, mas intercalados por uma inquietação e grunhidos com abertura de boca como se quisesse morder algo. Não era fácil concentrar-se com aquele quadro à sua frente… Dado a complexidade da paciente, que além de tudo não proferia uma palavra; sabia que seria uma demorada consulta. Procurou concentrar na mãe e iniciou uma longa anamnese que, certamente começou desde antes da gravidez e condições da gravidez e parto… Constatou, então, que a menina tinha antecedentes de paralisia cerebral e aspectos sugestivos de Down o que dava caráter bem complexo à doença e à doente.
Nem a própria mãe sabia descrever o que aquele pequeno ser estava sentindo, apenas referia grunhidos mais fortes, contorções que sugeriam a área abdominal como fonte de “dor”. Finalmente, chegou o momento de examiná-la, o que não seria uma tarefa fácil. Gentilmente, pediu a mãe que a colocasse na cama para o exame físico. A mãe, ao tentar levantá-la, recebeu um agressivo empurrão e o gesto se repetiu por várias vezes, provocando uma reação negativa na mãe, que usou uma atitude mais brusca para remover a criança da cadeira, cada vez mais contorcida sobre si mesma em uma postura de defesa. Nesse momento o clínico impediu a mãe de nova tentativa…
Levantou-se, aproximou-se com delicadeza e explicou à pequena com palavras simples e gentis o que pretendia, esperançoso da sua colaboração, no entanto, recebeu também um empurrão. A mãe tentou intervir rispidamente, mas ele pediu calma e sugeriu que ela orasse mentalmente. Bem atrás da sua cadeira o médico tinha um porta-retratos com a foto de Dr. Bezerra de Menezes — um presente do Sr. Calado, paciente e amigo.
Ele olhou fixamente para a fotografia, repousou delicadamente a sua mão direita sobre a testa suarenta da criança; fechou os olhos e mentalmente proferiu uma oração, pedindo humildemente a ajuda de Dr. Bezerra. Ele não soube precisar quanto tempo ficou em estado de prece… Em seguida, pediu para a mãe levar a criança para a cama de exames. Ela carregou a pequena sem resistência e acomodou-a um tanto sonolenta na cama. Ele aproximou-se e a examinou delicadamente sem problemas…
Enquanto explicava à mãe da criança a conclusão do exame físico e a prescrição, esta levantou-se para admiração da mãe e caminhou em direção ao clínico, enlaçou-o com seus bracinhos franzinos e deu-lhe um significativo beijo no rosto. Ele retribuiu carinhosamente abraçando-a, pois ficou impossibilitado de beijá-la, pois o rostinho da pequena pressionando o seu rosto e os seus bracinhos em volta do seu pescoço não permitiram que ele mexesse a cabeça. Foi um momento tão envolvente e de paz, tanto para ele e creio, principalmente, para aquele espírito encarcerado naquele corpinho frágil, deficiente, agora sem grunhidos e sem abrimentos de boca… Foi um beijo, além do corpo físico: um bálsamo que banhou a alma dele; e, um momento de mais pura gratidão, que trouxe paz à agitação daquele pequeno ser…
Serenos, encaminharam-se: o médico, a paciente e a mãe até a porta do consultório… Ele abraçou aquela mãezinha frágil, mas forte o suficiente para tão árdua missão e disse-lhe: Tenha fé…! Despediram-se na mais plena paz e felizes. Ele fechou a porta, sentindo aquele beijo vibrando nos escanlnhos da sua alma – sentou-se e chorou copiosamente… Nunca um beijo lhe transmitira tanta paz!