O Legado de Allan Kardec III

1 de Maio de 2024 Não Por JORGE Baldez

     O relato a seguir é do livro O Legado de Allan Kardec de Simoni Privato Goidanich, capítulo 5, intitulado: As quatro edições publicadas por Allan Kardec.
Entre 1852 e 1870, a França esteve submetida ao governo autoritário de Napoléon III, no Segundo Império. Qualquer pessoa que o governo considerasse “perigosa para a segurança pública” podia ser deportada ou encarcerada. As reuniões, a imprensa, as gráficas e as livrarias eram severamente controladas¹.
Durante esse governo autoritário, realizou-se toda a missão espírita de Allan Kardec em sua existência física. O mestre teve que se submeter não somente às limitações impostas à liberdade dos cidadãos em geral, mas também à vigilância que o governo imperial realizava de suas atividades doutrinárias.
Além disso, como todo escritor de sua época na França, Allan Kardec teve que se submeter às normas que o governo imperial estabelecia para a atividade literária.
O controle da atividade editorial regia-se pelo Decreto Imperial de 5 de fevereiro de 1810, de Napoléon I³. Durante sessenta anos, as gráficas e as livrarias estiveram submetidas praticamente a essa norma jurídica. Apesar de que algumas modificações foram acrescentadas em determinados pontos, o severo controle dessa atividade manteve-se até a promulgação do Decreto nº 24, de 11 de setembro de 1870, do Governo Republicano de Defesa Nacional4. No entanto, as gráficas e as livrarias somente puderam gozar de liberdade real a partir da Lei de 29 de julho de 18815.
O Decreto Imperial de 5 de fevereiro de 1810 estabelecia que o número de tipógrafos era fixo. Em Paris, por exemplo, eram 60 (artigo 3). Todos eles deviam obter uma licença do ministro do Interior e prestar um juramento de que nada imprimiriam contra os deveres perante o soberano e o interesse do Estado (artigos 5 e 9)6.
Cada tipógrafo devia ter um livro numerado e rubricado  pelo governador do departamento, no qual devia escrever, por ordem e data, o título de cada obra que desejava imprimir e o nome do autor. Esse livro devia ser apresentado quando solicitado e a polícia podia inspecioná-lo, se fosse necessário (artigo 11). Assim que lhe fosse possível, o tipógrafo devia enviar ao responsável pelas gráficas e livrarias no Ministério do Interior, bem como ao governador do departamento onde trabalhava, cópia da transcrição feita em seu livro e uma declaração de que tinha a intenção de imprimir a obra (artigo 12)7.
O responsável pelas gráficas e livrarias no Ministério do Interior — que durante todo o Segundo Império foi Paul Juillerat, autor dramático, poeta e romancista francês8 — podia ordenar o exame da obra, enviá-la a um censor e suspender a impressão (artigos 13 e 14). Com base no relatório do censor, o responsável pelas gráficas e livrarias do Ministério do Interior podia indicar ao autor as modificações ou supressões consideradas adequadas e, se o autor se negasse a fazê-las, podia proibir a venda da obra, ordenar a destruição dos moldes de impressão e apreender as páginas ou exemplares já impressos (artigo 16)9.
Quando o responsável pelas gráficas e livrarias no Ministério do Interior considerava que não era necessário examinar uma obra e nenhum dos ministros havia solicitado o exame, enviava-se ao tipógrafo um recibo da página de transcrição do registro. (artigo 23)¹¹.
Se a obra examinada nada contivesse de contrário aos deveres perante o soberano e aos interesses do Estado, o censor lavrava uma ata, cuja cópia, rubricada pelo responsável pelas gráficas e livrarias no Ministério do Interior, era enviada ao autor ou ao tipógrafo (artigo 24). A venda e a circulação de toda obra cujo autor ou editor não apresentasse essa ata podiam ser suspensas ou proibidas. Nesse caso, as edições ou exemplares podiam ser apreendidos de qualquer tipógrafo ou livreiro (artigo 26). Ainda que o autor, o tipógrafo ou o editor apresentassem essa ata, a venda e a circulação de qualquer obra podia ser suspensas e os exemplares, confiscados (artigo 27)¹².
À semelhança dos tipógrafos, todos os livreiros deviam obter uma licença do ministro do Interior e prestar um juramento de não vender ou distribuir nada contrário aos deveres perante o soberano e ao interesse do Estado (artigos 29 e 30)¹³.
Os tipógrafos eram obrigados a depositar exemplares de cada obra impressa, que deviam ser enviados à Biblioteca Imperial, ao Ministro do Interior, à Biblioteca do Conselho de Estado e ao responsável pelas gráficas e livrarias no Ministério do Interior (artigo 48)¹6.
Diante do severo controle das gráficas e livrarias no Segundo Império, foi necessário seguir esses estritos procedimentos legais para o livro La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme ficou registrada pelo governo francês.
Nos Arquivos Nacionais da França, encontram-se os seguintes documentos sobre a publicação, até o falecimento de Allan Kardec, de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme:
1) o registro da declaração nº 9460, de 7 de outubro de 1867, pela qual a gráfica Rouge Frères, Dunon et Fresné manifestou, junto ao Ministério do Interior da França, sua intenção de imprimir 3000 exemplares de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme (figura 3). Esse documento corresponde ao cumprimento do artigo 12 do Decreto Imperial de 5 de fevereiro de 1810, segundo o qual o tipógrafo devia declarar ao responsável pelas gráficas e livrarias no Ministério do Interior sua intenção de imprimir a obra.
2) o registro, por parte do Ministério do Interior da França, do depósito legal nº 61, de 4 de janeiro de 1668 (figura 4), dois dias antes de que o livro estivesse disponível para a venda¹7. Como as autoridades governamentais não se opuseram ao conteúdo da obra, foi possível realizar a impressão, o depósito legal e a venda. O exemplar da obra depositado legalmente na Biblioteca Imperial, no qual estão os carimbos tanto da Biblioteca Imperial, como do depósito legal (figura 5), encontra-se na Biblioteca Nacional da França.
Os documentos dos Arquivos Nacionais da França provam que, durante a existência física de Allan Kardec, houve somente esse único registro de depósito legal de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme. O Catálogo Geral da Biblioteca Nacional da França¹8 prova igualmente que, até a data do falecimento de Allan Kardec, essa biblioteca somente tem depositado legalmente esse exemplar de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme (figura 6).
3) O registro da declaração nº 979, de 4 de fevereiro de 1869, pela qual a mesma gráfica (Rouge Frères, Dunon et Fresné) manifestou, junto ao Ministério do Interior da França, sua intenção de imprimir mais 2000 exemplares de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme (figura 7). Esse documento refere-se à impressão de exemplares com o mesmo conteúdo já autorizado pelo Ministério do Interior e depositado legalmente. Se tivesse sido feita alguma modificação no conteúdo da obra previamente autorizado, teriam sido necessários uma nova autorização governamental e outro registro de depósito legal – o que não ocorreu, segundo comprovamos em nossa investigação documental nos Arquivos Nacionais da França.
Portanto, os documentos dos Arquivos Nacionais da França e da Biblioteca Nacional da França provam, de maneira categórica, que, até o falecimento de Allan Kardec, o livro La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme foi impresso sempre com o mesmo conteúdo, isto é, sem que o autor tenha feito modificação alguma na obra. Esse conteúdo é o do exemplar depositado legalmente em 4 de janeiro de 1868, que atualmente faz parte do acervo da Biblioteca Nacional da França.
Além das provas documentais oficiais do governo francês, os fatos revelam que, durante a existência física de Allan Kardec, todas as edições publicadas de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme apresentam igual conteúdo.
Na Revista Espírita de novembro de 1867, Allan Kardec informou que estava no prelo La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme¹9.
Na Revista Espírita de janeiro de 1868, Allan Kardec anunciou a primeira edição da obra²0. Um exemplar da primeira edição encontra-se na Biblioteca Nacional da França — o que corresponde ao depósito legal — e outro, por exemplo, na Biblioteca Nacional Central de Florença, Itália²¹ (figura 8).
Ao comunicar, na Revista Espírita de fevereiro de 1868, a segunda edição de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme, o próprio Allan Kardec afirmou que não havia feito nenhuma modificação na obra²². Um exemplar da segunda edição pode ser encontrado, por exemplo, na Biblioteca Nacional Victor Manuel III, de Nápoles, Itália²³ (figura 9).
A segunda edição, igual a primeira, de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme foi traduzida para o idioma espanhol por José Maria Fernández Colavida. Essa tradução foi publicada em 1871, dois anos depois do falecimento de Allan Kardec (figura 10). Um exemplar dessa tradução para o espanhol da segunda edição francesa faz parte do acervo da Biblioteca da Universidade de Havard, Estados Unidos²4.
Na Revista Espírita de março de 1868, Allan Kardec anunciou a publicação da terceira edição da obra²5. ao se comparar seu conteúdo com o das duas edições anteriores, constata-se que o conteúdo das três edições é idêntico. Um exemplar da terceira edição encontra-se na Biblioteca Real de Copenhague, Dinamarca²6 (figura 11).
Também por comparação, comprava-se que o conteúdo da quarta edição, datada de 1868 e disponível, por exemplo, na Biblioteca Municipal de Lyon, Enghien, Bélgica (figura 12), é igual ao das três anteriores²7.
Constata-se, portanto, que, durante sua existência física, Allan Kardec depositou legalmente e imprimiu um único conteúdo, reproduzido em quatro edições, de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme. A propósito, conforme demonstra o registro da declaração de impressão perante o Ministério do Interior da França, Allan Kardec, no mês anterior a seu falecimento, mandou imprimir mais 2000 exemplares desse mesmo conteúdo.
A quarta edição de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme é a última que Allan Kardec publicou durante sua existência física²8. Portanto, a edição definitiva de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme, de Allan Kardec, é a quarta, datada de 1868, cujo conteúdo, igual ao das três anteriores, coincide totalmente com o exemplar depositado legalmente em 4 de janeiro de 1868, que faz parte do acervo da Biblioteca Nacional da França.
Por conseguinte, na segunda edição do Catalogue raisonné des ouvrages pouvant servir à fonder une bibliothèque spirite, publicada em agosto de 1869, está recomendada expressamente a quarta edição de La genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme ( figuras 13 e 14).

Referências:
1, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28 e as figuras de documentos com a numeração de 3 a 14 – não descritas por falta de espaço no texto. Podem ser comprovadas no Livro O Legado de Allan Kardec da autora Simoni Privato Goidanich – 2ª ed. ago. 2018- São Paulo, SP: Edição USE/ CCDPE.