A questão do carma, causa e efeito ou ação e reação

25 de Junho de 2024 Não Por Sergio França Martins

 Este artigo é do livro intitulado: Autonomia a história jamais contada do Espiritismo do autor Paulo Henrique de Figueiredo.
A lei do carma ou karma tem origem na filosofia ancestral do Oriente, mas foi adotada modernamente, no Ocidente, por exemplo, pela teosofia, doutrina proposta por Helena Blavatsky, tendo grande influência entre os espíritas pós-Kardec, tanto na França quanto no Brasil, como um desvio da proposta original. Sua semelhança com o Espiritismo existe em função de ambas adotarem a reencarnação como fenômeno natural, mas as teorias morais de ambas são opostas. Isso porque  a teosofia adota a moral heterônoma das religiões ancestrais, enquanto o Espiritismo, Doutrina moderna, considera a evolução da alma por seu esforço, numa teoria moral autônoma.
Em sua obra A chave para a teosofia, Blavatsky vai tratar da punição pelas faltas cometidas, afirmando:
Nossa filosofia possui uma doutrina de punição tão severa quanto a do mais severo calvinista, mas apenas muito mais filosófica e consistente com a justiça absoluta. Nenhuma ação, nem mesmo um pensamento pecaminoso passará impune;[…]. Acreditamos em uma lei de retribuição infalível, chamada karma, que se sustenta através de uma concatenação natural de causas e seus resultados inevitáveis.[…] [ocorre a reencarnação] e é nesse renascimento, pronto para ele – um renascimento selecionado e preparado por essa LEI misteriosa e inexorável, mas infalível em equidade e sabedoria de suas sentenças – que os pecados da vida anterior do Ego são punidos. O Ego é lançado nesta Terra, o plano e a região de seus pecados, onde terá de expiar todos os maus pensamentos e ações. (BLAVATSKY, 2011, p. 127).
Na teosofia, então, todas as vicissitudes da vida são determinadas, selecionadas, preparadas, por uma lei misteriosa e determinante, alheia à vontade do Espírito, que lhe impõe castigos, como efeito incontornável da causa inicial, que são atos e pensamentos das vidas anteriores. Essa moral é heterônoma, pois o ser seria condicionado por meio de castigos a não repetir mais os atos e pensamentos, em virtude dos castigos recebidos, pois, segundo a teosofia, “o karma é uma lei infalível que ajusta o efeito à causa, nos planos físico, mental e espiritual” (idem, p. 176)
Segundo a teosofia, a reencarnação é “um renascimento selecionado e preparado por essa LEI misteriosa e inexorável”, propondo assim um determinismo quanto às vicissitudes da vida, ou seja, todo sofrimento físico é o efeito inevitável de erros cometidos nas vidas passadas, numa contabilidade fria de fatos, erros e castigos.
Na doutrina teosófica, que adota a lei do carma ou causa e efeito, não há diferença entre sofrimento físico e moral, pois todo sofrimento é a reação de uma lei infalível de retribuição causada por uma ação anterior. Nesse mecanismo assemelha-se ao pecado, que é um ato que recebe como efeito um castigo, representado pelo sofrimento. Ou seja, a alma voltará a ser “o Deus que era antes e encarnou-se no homem” (idem, p. 181). É o mesmo pensamento determinado pelos dogmas do velho mundo, degeneração da alma, queda, culpa, pecado, castigo etc. Não há moral nova, mas manutenção da teoria ancestral da submissão.
A causalidade tem sua lógica na relação entre um evento (causa) e um segundo evento (efeito), de tal modo que o segundo seja uma consequência do primeiro. Na física clássica, segundo a terceira das leis de Newton, toda ação corresponde a uma reação de igual intensidade e em sentido contrário. Essa é a lógica referente aos conceitos de pecado e carma: causa e efeito, ação e reação.
Para o Espiritismo, a teoria moral presente nas leis divinas segue uma lógica completamente diferente. Primeiramente, diferencia-se entre sofrimento físico e moral. O sofrimento físico é uma ocorrência, um fato, ocorrido no mundo material, em razão de uma vicissitude. Ele ocorre no corpo físico de qualquer ser vivo, seja animal ou ser humano. Já o sofrimento moral é próprio do espírito humano, assim como a felicidade.
Depois de muitos anos de pesquisa, milhares de diálogos com Espíritos nas mais diversas fases evolutivas, e recebendo o ensinamento dos Espíritos superiores a partir de diversas fontes, consagrando a universalidade de seu ensino, Allan Kardec vai definir os conceitos de uma inovadora teoria moral, presente na realidade do Universo. Essa conclusão foi apresentada mais completamente em suas obras O Céu e o Inferno e A Gênese, obras conclusivas da Doutrina Espírita. A coerência dessa moral é determinada pelo conceito de inerência. Na lógica, o significado de inerente é: “Que só existe em relação a um sujeito, a uma maneira de ser intrínseca a este” (Dicionário Houaiss). Segundo o Espiritismo, enquanto o sofrimento físico é natural e próprio da vida orgânica, em virtude de um evento, fato ou ocorrência, tanto o sofrimento moral quanto a felicidade são condições inerentes ao progresso realizado pelo Espírito. Vejamos estas definições em O Céu e o Inferno:
a)   Felicidade – Sendo a felicidade dos Espíritos inerente às suas qualidades, haurem-na eles em toda parte em que se encontram, tanto na Terra quanto no mundo espiritual. A felicidade está na razão direta do progresso realizado, de sorte que, de dois Espíritos, um pode não ser tão feliz quanto o outro, unicamente por não possuir o mesmo adiantamento intelectual e moral (p. 30).
b)    Sofrimento moral – Sendo o sofrimento inerente à imperfeição, tanto mais tempo se sofre quanto mais imperfeito se for, da mesma forma por que tanto mais tempo persistirá uma enfermidade quanto maior a demora em tratá-la. Assim é que, enquanto o homem for orgulhoso, sofrerá as consequências do orgulho; enquanto egoísta, as do egoísmo (p.64).
c) Dependendo o sofrimento da imperfeição, como o gozo da perfeição, a alma traz consigo próprio castigo ou prêmio, onde quer que se encontre, sem necessidade de um lugar circunscrito (p.91).
O sofrimento moral (sensação do espírito) não está condicionado a um evento, como acontece com o sofrimento físico (um corte  causa dor), mas é uma condição constante enquanto ele mantiver sua imperfeição. Portanto:
A duração do castigo depende da melhoria do Espírito culpado. Nenhuma condenação por tempo determinado lhe é prescrita. O que Deus exige por termo de sofrimentos é um melhoramento sério, efetivo, sincero, de volta ao bem. Deste modo o Espírito é sempre o árbitro da própria sorte, podendo prolongar os sofrimentos pela pertinácia do mal, ou suavizá-los e anulá-los pela prática do bem. Uma condenação por tempo predeterminado teria o duplo inconveniente de continuar o martírio do Espírito renegado, ou de libertá-lo do sofrimento quando ainda permanecesse mal. Ora, Deus, que é justo, só pune o mal enquanto existe, e deixa de o punir quando não existe mais; por outra, o moral, sendo por si mesmo causa de sofrimento, fará este durar enquanto subsistir aquele, ou diminuirá de intensidade à medida que ele decresça. (KARDEC, [1865] 1995, p. 92-3).
O Espírito é o “árbitro da própria sorte”. Desse modo, não está sujeito a uma lei inexorável, mas sua condição é determinada por sua vontade.
O sofrimento físico é uma condição natural do mundo em seu período primitivo. Nos mundos felizes, quando os indivíduos são solidários entre si, já não existe nas proporções do que ocorre nas condições atuais da Terra. As vicissitudes da vida são oportunidades para que os Espíritos, quando começam a desenvolver-se intelecto-moralmente, no mundo espiritual percebem que são responsáveis pelo próprio planejamento do seu progresso. Quando adquirem essa consciência –  e todos chegam a essa condição, com mais ou menos tempo -, passam a fazer a escolha de suas provas, pedindo para vivenciar determinadas vicissitudes como instrumentos para alcançar seus objetivos. Quando estão no mundo espiritual, estudam a si mesmos, reveem as vidas pregressas, elaboram projetos de vidas futuras, entusiasmados com as conquistas que podem adquirir por seu esforço e determinação. Depois, quando o progresso está realizado, a felicidade proporcional é a consequência natural. Mas, mesmo aí, continuam a fazer uso de provas, enquanto reencarnam, mas agora as vicissitudes são oportunidades de servir, por seu exemplo, ao progresso das criaturas com as quais convivem e desejam que sejam felizes como eles são.
No mecanismo da evolução do Espírito, a responsabilidade pelos atos ocorre na proporção da competência de escolher pelo domínio da vontade, ou livre arbítrio, proporcional à capacidade intelectual ou inteligência alcançada 64.
O ser livre, consciente de suas escolhas, tem a responsabilidade moral por seus atos. Segundo esse princípio, o ato só tem consequências morais quando o espírito o faz de forma consciente e livre. Por exemplo, um espírito simples e ignorante pode matar um invasor de seu território agindo por instinto. Já aquele que mata para satisfazer o comando de seu orgulho é responsável pelo ato. O espírito que sofre sem compreender a causa considera seus infortúnios como castigo. E Allan Kardec precisa citar esse termo, comumente considerado, castigo, para ressignificá-lo pela nova teoria moral que apresenta. Assim, Kardec define, quanto  à responsabilidade pelos atos e não quanto ao ao sofrimento moral: “Não há regra absoluta nem uniforme quanto à natureza e duração do castigo: a única lei geral é que  toda falta terá punição, e terá recompensa todo ato meritório, segundo  o seu valor” (KARDEC, [1865] 1995, p. 92).
Realmente, há responsabilidade por todos os atos equivocados praticados de forma consciente e intencional, e eles precisam ser reparados, mas a reparação só ocorre se for feita também de forma consciente, realizando o bem no lugar do mal anteriormente praticado. E essa condição de agir pelo bem é uma conquista do Espírito imperfeito somente depois de passar por arrependimento e expiação. O bem só tem sentido quando exercido de forma desinteressada, e nunca quando é um ato submisso pelo medo de ser castigado. Toda reparação se dá pela caridade desinteressada. Enquanto não passar pelo processo de expiação para superar sua condição de imperfeição, o espírito permanecerá sofrendo moralmente e considerando as dificuldades da vida como castigo, imerso na ilusão consequente do caminho que escolheu. Por mais que o sofrimento pareça eterno para o Espírito imperfeito, sempre haverá nova oportunidade concedida por Deus para o seu despertar, ele sempre a renova, tanto tempo quanto o Espírito demorar para arrepender-se. Assim:
Deus, que é soberanamente justo e bom, concede ao Espírito tantas encarnações quantas as necessárias para atingir seu objetivo, a perfeição. Para cada nova existência de permeio à matéria, entra o Espírito com o cabedal adquiridos nas anteriores, em aptidões, conhecimento intuitivo, inteligência e moralidade. Cada existência é assim um passo avante no caminho do progresso. A encarnação é inerente à inferioridade dos espíritos, deixando de ser necessária desde que estes, transpondo-lhe os limites, ficam aptos para progredir no estado espiritual, ou nas existências corporais de mundos superiores, que nada têm de materialidade terrestre. Da parte destes a encarnação é voluntária, tendo por fim exercer sobre os encarnados uma ação mais direta e tendente ao cumprimento da missão que lhes compete junto dos mesmos. Desse modo aceitam abnegadamente as vicissitudes e sofrimentos da encarnação. (KARDEC, [1865] 1995, p. 32)
Durante a vida na Terra quem tem um sofrimento moral, como revolta, raiva, em razão de uma perda material, doença ou lesão física de seu organismo, sente isso por ter uma imperfeição, como orgulho e egoísmo. Essa condição de imperfeição é um estado da alma criado por ele mesmo, um hábito infeliz. A dificuldade que enfrenta, portanto, não é verdadeiramente um castigo, mas uma oportunidade para despertar, compreender que só deixará de sofrer moralmente quando superar essas imperfeições. Quando enfrenta as dificuldades sem revolta e raiva, lutando para superá-las, percebendo que todos as  enfrentam neste mundo, é porque já está em vias de progresso, de mudança de mentalidade. Mas todos chegarão à condição de entendimento a partir do qual enfrentam as vicissitudes da vida de cabeça erguida, sem murmurar, mostrando àqueles à sua volta que são fortes para manter a esperança e a felicidade da alma mesmo enquanto vivem a maior adversidade, mergulhados nas tempestades da vida. esse foi o ensinamento simbólico de Jesus, quando permaneceu sereno no barco, enquanto os discípulos se desesperavam, temerosos com a tempestade que os sacudia violentamente. Todo mundo tem o potencial de conquistar essa tranquilidade do justo, a serenidade do entendimento, a paz do espírito, aos poucos e progressivamente, pois essa é a nossa meta.
Essa é a verdadeira justiça divina segundo o Espiritismo. A mais ampla condição de liberdade e responsabilidade individual. O Espírito é o árbitro de si mesmo. Quando consciente de seu destino, é ele próprio que planeja seus desafios e escolhe suas provas. Se o sofrimento moral é consequência natural, a felicidade é proporcional à conquista da caridade desinteressada, da sabedoria, permitindo participar da criação divina, contribuindo ativa e progressivamente para a harmonia universal. Quem é feliz no Universo não só usufrui de uma conquista meritória como a deseja para todos, fazendo uso integral de seu tempo e sua habilidade para auxiliar os Espíritos inferiores a ele a alcançarem sua condição ditosa.
64. Esse princípio referente à responsabilidade pelos atos está estabelecido pelo seguinte ensinamento em A Gênese: “O instinto enfraquece, ao contrário, à medida que a inteligência se desenvolve, porque domina a matéria. Com a inteligência racional, nasce o livre arbítrio que o homem usa à sua vontade: então somente para ele, começa a responsabilidade de seus atos” (KARDEC, [1868] 2018, p. 100).

 Referência:
1- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo/Paulo Henrique de Figueiredo – São Paulo (SP): Fundação Espírita André Luiz, 2019.