O que os espíritas precisam saber

25 de Julho de 2024 Não Por Sergio França Martins

É imprescindível que os espíritas saibam a verdadeira história do Espiritismo para compreenderem a sua origem e como a reação espiritualista foi fundamental para o seu surgimento que, em 1868, ao analisar uma obra de um pensador pertencente a esse movimento cultural – o doutor Alexis Chassang(1827-1888),que, além de dicionarista e gramático, era professor de ciências morais e mestre de conferências na Escola Normal Superior de Paris, tendo como especialidade a Grécia, Kardec afirmou:
A obra do sr. Chassang é a aplicação dessas ideias[espiritualistas] à arte em geral, e à arte em particular. Reproduzimos com prazer o que dela diz o autor da crítica do jornal Patrie, porque é uma prova a mais da enérgica reação que se opera em favor das ideias espiritualistas e que, como dissemos, toda defesa do Espiritualismo Racional abre caminho para o Espiritismo, que dele é o desenvolvimento, combatendo os seus mais tenazes adversários: o materialismo e o fanatismo. (Kardec, [RE] 1868, p. 223)
Nessa publicação na Revista Espírita, não só Kardec retoma a questão da reação espiritualista na universidade e na cultura em geral pelo Espiritualismo Racional, declarando que esse movimento abriu caminho para o Espiritismo, mas vai além, afirmando que o Espiritismo é um desenvolvimento do Espiritualismo Racional. Aqui já fica clara a conclusão de que, por princípio, o Espiritismo de forma alguma se filia a qualquer tradição religiosa – representada pelas igrejas e pelo Espiritualismo dogmático -, mas se desenvolve a partir do Espiritualismo Racional e suas consequências científicas, morais, educacionais e sociais, moral da liberdade, educação ativa e movimento liberal francês.
Kardec também comentou uma publicação superficial e equivocada na imprensa leiga francesa:
Sua ignorância das tendências do Espiritismo é tal que não sabem mesmo que é uma doutrina liberal, emancipadora da inteligência, inimiga da fé cega, que vem proclamar a liberdade de consciência e o livre exame como base essencial de toda crença séria. Não sabem mesmo que o primeiro escreveu sobre a sua bandeira esta imortal máxima: Fora da caridade não há salvação, princípio de união e de fraternidade universais, o único que pode pôr um termo aos antagonismos dos povos e das crenças. (Kardec, [RE] 1868, p. 43)
É importante destacar que o termo caridade utilizado por Kardec, para o Espiritualismo Racional, naquele tempo (divergindo da definição atual do termo, que se aproxima do assistencialismo), representava agir pelo dever, ou seja, de forma livre, consciente, intencional, independentemente de castigos e recompensas, com a plena compreensão da lei moral. A caridade é um princípio que orienta o agir integral do ser, e não uma atividade complementar, como se fosse um comportamento acessório.
É necessário voltarmos no tempo, em 1848, Victor Cousin publica a obra Justiça e caridade. Após a proclamação da Segunda República francesa, o novo governo decretou o sufrágio universal, o fim da pena de morte, abolição da escravatura, redução da jornada de trabalho, liberdade de imprensa e reunião, criação de oficinas nacionais. O espírito de reformar o mundo evocava nos teóricos franceses, como Saint-Simon, Fourier, Lamennais, o pensamento de Jesus de união de todos como meio de libertação do povo, um projeto de uma nova humanidade.
Para Victor Cousin, a quase totalidade dos sistemas de moral, legislação e economia política insistiu em reconhecer um só princípio quanto à organização social, que é a justiça. Todavia, afirma o filósofo, existem dois, intimamente conectados, a justiça e a caridade, e nenhuma sociedade terá um desenvolvimento harmonioso sem completar esses dois sentimentos naturais.
A caridade, como fundamento imprescindível para uma nova era, tem sua conceituação esclarecida pela ciência moral, que define, entre os deveres sociais, os da justiça, representados por “não faças a outrem aquilo que não querias que te fizessem”, e os da caridade, por “fazer aos outros aquilo querias que te fizessem”. Victor Cousin faz uma profunda e firme distinção entre essas duas virtudes:
[…] A justiça respeita ou restitui, a caridade dá. (Cousin, 1848, p. 20)
Concluiu Cousin: “Para a justiça, a fórmula é clara: respeitar o direito de outrem. A caridade, porém, não conhece regras, nem limites. Ultrapassa toda obrigação. Está sua beleza exatamente em sus liberdade”:
O verdadeiro mundo do homem é o da liberdade, e sua verdadeira história não é outra senão o constante progresso da liberdade, melhor e melhor compreendido e apreciado de geração em geração, e sempre se expandindo no pensamento do homem, até que, por época e época, vem aquela em que todos os direitos são conhecidos e respeitados, e onde, por assim dizer, a própria essência da liberdade se manifesta. (Cousin, 1848, p. 52)
Realmente, a caridade deve ser um ato livre, todavia é absolutamente indispensável educar a criança e o jovem quanto à necessidade de unir caridade e justiça se quisermos promover a evolução moral da humanidade. A caridade deve se tornar um ato social comum, para que a solidariedade vire um hábito natural da humanidade. O Espiritualismo Racional e o Espiritismo concorriam unidos para promover essa conquista durante o século 19, enfrentando gigantescas resistências.
Kardec perguntou aos Espíritos sobre aqueles que fazem uso dos bens da Terra para proporcionar a si mesmos o supérfluo enquanto a outros falta o necessário. É exatamente esse o mal maior do mundo. Em respostas, os Espíritos superiores ensinaram que os vícios levam à criação de necessidades irreais:
Olvidam a lei de Deus e terão que responder pelas privações que houverem causado aos outros. Nada tem de absoluto o limite entre o necessário e o supérfluo. A Civilização criou necessidades que o selvagem desconhece e os Espíritos que ditaram os preceitos acima não pretendem que o homem civilizado deva viver como selvagem. Tudo é relativo, cabendo à razão regrar as coisas. A Civilização desenvolve o senso moral e, ao mesmo tempo, o sentimento da caridade, que leva os homens a se prestarem mútuo apoio. Os que vivem à custa das privações dos outros exploram, em seu proveito, os benefícios da Civilização. Desta têm apenas o verniz, como muitos há que da religião só tem a máscara. !Kardec, [1860] 1995, p. 342)
O ato da caridade não se caracteriza pelo assistencialismo, como a simples esmola ou dar um prato de comida ao esfomeado, pois o simples fato de existir na sociedade alguém que precisa de uma esmola demonstra que a sociedade não está promovendo uma justiça equivalente à lei natural ou divina. Caridade é apoio mútuo. Pois, “condenando-se a pedir esmola, o homem se degrada física e moralmente”. Então a esmola, segundo os Espíritos, é condenável? Não, eles afirmam, “o que é condenável não é a esmola, mas a maneira por que habitualmente é dada”. Aquele que bem compreende a caridade vai ao encontro do necessitado, não espera que lhe estenda a mão. Ou seja: “Uma sociedade que se baseia na lei de Deus e na justiça deve prover a vida do fraco, sem que haja para ele humilhação. Deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes deixar à mercê do acaso e da boa vontade de alguns” (Kardec, [1860] 1995, p. 408).
Qual o ponto alto da virtude, segundo o Espiritismo? “É a que se assenta na mais desinteressada caridade”, afirmam os Espíritos superiores.
Por outro lado, qual o sinal inequívoco da imperfeição moral? “O interesse pessoal, […] o apego às coisas materiais constitui sinal notório de inferioridade, porque, quanto mais se aferrar aos bens deste mundo, tanto menos compreende o homem o seu destino” (Kardec, [1860], p. 408).
A caridade desinteressada é justamente a proposta moral do dever, ato moral livre, consciente e voluntário. Independente de obrigação, livre de castigos e recompensas, é a moral autônoma. Por meio dela, o objetivo do comportamento moral deixa de ser o interesse na salvação como promessa para a vida futura e passa a ser um instrumento para a regeneração da humanidade. Deixa de ser um meio para obtenção dos desejos pessoais e se torna instrumento da verdadeira justiça social.
Quem faz o bem para viver numa condição melhor após a morte não age por caridade desinteressada, mas faz o bem por cálculo, como um negócio. Age de uma forma bem diferente aquele que, tendo em vista corrigir seus defeitos e desenvolver suas virtudes para melhorar-se, faz, em consequência disso, o bem.
Os Espíritos superiores explicam essa questão assim:
Procede como egoísta todo aquele que calcula o que lhe possa cada uma de suas boas ações render na vida futura, tanto quanto na vida terrena. Nenhum egoísmo, porém, há em querer o homem melhorar-se, para se aproximar de Deus, pois que é o fim para o qual devem todos tender. (Kardec, [1860] 1995, p. 414)
Desse modo, é importante frisar que a meta do Espiritismo, como desenvolvimento do Espiritualismo Racional, é social. Pela caridade desinteressada, denuncia como egoísmo a moral proposta pelas religiões formais, que incitam os indivíduos a desesperadamente salvarem-se a si próprios, como se a vida fosse uma corrida na qual os perdedores merecem condenação eterna aos sofrimentos, ou “fora da igreja não há salvação”. O Espiritismo ressignifica o conceito desse termo, salvação, tirando-o do âmbito da importância da personalidade para a da solidariedade plena, por meio da caridade desinteressada, como solução para a transformação da humanidade. Por isso, no Espiritismo, afirma-se que “fora da caridade não há salvação”.
Significa salvação para todos nós pelo apoio mútuo, como seres coletivos, e não para cada um, lutando por si mesmo.
Referência:
1- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo/Paulo Henrique de Figueiredo — São Paulo(SP): Fundação Espirita André Luiz, 2019.