O que os espíritas precisam saber II

10 de Setembro de 2024 Não Por Sergio França Martins

Apresentamos trechos do livro Autonomia a história jamais contada do Espiritismo do autor Paulo Henrique de Figueiredo.
Infelizmente, os espíritas no Brasil sempre estiveram longe do cenário cultural no qual o Espiritismo se estabeleceu apropriadamente na França, como desenvolvimento do Espiritualismo Racional. A geração francesa do século 19 discutiu as crenças do passado, substituindo a moral heterônoma do velho mundo para a moral autônoma do mundo novo. Um pequeno grupo de brasileiros do século 20, filiados à crença dogmática tradicional católica, presença absoluta em suas mentes, não podia compreender a liberdade como fundamento do desenvolvimento moral. Estava condicionado pela ideia de pecado e castigo da heteronomia, sem compreender o sentido do dever como ato moral livre, consciente e voluntário. Os místicos brasileiros estavam como os religiosos fanáticos anteriores  à Revolução Francesa, que não poderiam compreender o Espiritismo por serem prisioneiros do paradigma dogmático, como explica Allan Kardec:
Se se veem, ainda hoje, pessoas que têm sob os olhos todas as provas, materiais e morais, da realidade dos fatos espíritas, e que, apesar disto, se recusam à evidência e ao raciocínio, com mais forte razão dever-se-ia encontrá-las muito mais há um século; é que seu espírito é ainda impróprio para assimilar essa ordem de ideias; elas veem, ouvem e não compreendem, o que não acusa uma falta de inteligência, mas uma falta de aptidão especial; elas são como as pessoas a quem, embora muito inteligentes, falta o sentido musical para compreender e sentir as belezas da música; é o que é preciso entender quando se diz que a hora não é chegada. (Kardec, [RE] 1868, p. 216)
Ou seja, Kardec apresenta uma teoria que contempla todos os seres regidos por uma lei natural, seguindo um caminho evolutivo igual para todos, desde o simples e ignorante que, aos poucos, vai conquistando por seus esforços o desenvolvimento de suas faculdades, razão e vontade. E, por estas adquirindo inteligência, livre arbítrio e senso moral. Desse modo, a sua responsabilidade moral não existe inicialmente, e depois surge e se amplia com o desenvolvimento da inteligência, como explicou em sua obra A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. Essa teoria tem coerência com a psicologia experimental do seu tempo e atende aos critérios da razão, abrindo caminho para uma moral da liberdade, autônoma, fundamento do mundo novo ou regeneração da humanidade.
A reencarnação segundo o Espiritismo tem uma definição conceitual moderna e oposta às doutrinas do início da civilização. Nesse tempo, havia uma concepção estática da criação e não progressiva, conceito recente: “Segundo os hindus, as almas tinham sido criadas felizes e perfeitas, e sua queda foi o resultado de uma rebelião”. Desse modo, sua encarnação seria uma punição:
Assim, a metempsicose dos hindus está fundada sobre os princípios da degradação das almas; a reencarnação segundo os Espíritos, está fundada sobre o princípio do progresso sucessivo.[…]. Segundo os Espíritos, a ignorância é o início, a perfeição, o objetivo e o resultado. Seria supérfluo procurar demonstrar qual das doutrinas é a mais racional e dá mais alta ideia da bondade e justiça de Deus. É, pois, por completa ignorância de seus princípios que algumas pessoas as confundem. (Kardec, [RE] 1859, p. 223)
Desde o século 20, as ideias ancestrais se infiltraram no meio espírita, adulterando teoria inovadora da Doutrina Espírita. Conceitos como carma ou karma derivam da ideia de degradação da alma, depois absorvida pela doutrina da igreja como o pecado original de Adão, que também sofrerá a queda do paraíso, onde era feliz e perfeito.
A falsa teoria ditada pelos inimigos invisíveis a Roustaing mistura aos termos calcados da obra de Kardec aqueles dogmas conservadores sobre a degradação da alma próprios dessas antigas doutrinas, com a intenção implícita de anular o Espiritismo como alavanca das ideias progressistas. Ou seja, um pensamento filiado à tradição religiosa dogmática da Igreja, um pensamento retrógrado, heterônomo. Tanto Roustaing na França quanto um grupo de espíritas brasileiros rejeitam a base espiritualista racional do Espiritismo por um tradicionalismo retrógrado, fundamentado na tradição mística, se opondo a Kardec.
Repetimos, então, que a Doutrina de Kardec é liberal, associada às ideias progressistas, abalizadas na moral da liberdade ou moral autônoma.
A equivocada teoria de Roustaing é a continuação da heteronomia das velhas religiões do passado, da tradição dogmática, baseada em castigos divinos, em pecados originais, nas quedas da alma. O Jesus presente em Kardec é um exemplo a ser seguido, por ter vivenciado o caminho de todos nós. Foi inicialmente simples e ignorante, reencarnou centenas de vidas até conquistar a consciência de si mesmo, desenvolveu sua inteligência, livre arbítrio e senso moral. Aprendeu com os erros e acertos. Galgou vida após vida a evolução dos mundos que habitou, de primitivo, expiações e provas, regeneração e felicidade. Depois tornou-se Espírito cocriador, ajudando a Deus junto aos grandes grupos gestores da harmonia universal. Por fim, participando do grupo de Espíritos puros que cuidaram da evolução de nossa Terra, reencarnou entre nós, filho de Maria e José, cresceu menino. Viveu com todos e nos ensinou a enfrentar o mundo vivendo nele com todas as limitações que o corpo nos impõe. Sofreu como sofremos, morreu como vamos morrer. E voltou em Espírito para provar, com o testemunho de Madalena, a imortalidade e a realidade da vida espiritual.
Já segundo a falsa comunicação endereçada a Roustaing, que tanto aprouve aos dirigentes espíritas do Brasil por se aproximar da tradição do passado, justificando a ideia do pecado original e da queda, Jesus não teria sido nem Deus nem homem. Um ser que nunca poderia encarnar e, para estar entre nós, teria executado uma vida falsa, sem dor, sem fome, sem vida, num corpo etéreo.
Canuto Abreu escreveu ter vivenciado na Federação Espírita Brasileira(FEB) uma instituição afastada dos ensinamentos originais de Kardec. Em 1902, quando o livro Os quatro Evangelhos de Roustaing, era publicado em trechos, todos os meses, na revista Reformador, o editorial de maio trouxe a seguinte notícia:
E foi por compreender a sua preponderante utilidade[do Evangelho] que a Federação instituiu o seu estudo nas sessões das terças-feiras, preferindo-o ao Evangelho segundo o Espiritismo[por Allan Kardec], que apenas contém os ensinos morais, Os quatro Evangelhos (Revelação da revelação), ditados a J. B. Roustaing, por ser completa essa revelação, contendo, não somente o desenvolvimento daqueles ensinos, mas a explicação de todos os atos da vida de Jesus com uma nova e esclarecedora orientação acerca da natureza e da sua missão messiânica. (FEB, 1902, p. 1)
Canuto Abreu desejava pôr a limpo essas profundas diferenças entre o Espiritismo proposto por Kardec no século 19 e esse novo movimento espírita que se afastava dele debaixo de seus olhos, no início do século 20. Desde 1915 se correspondeu com os pioneiros franceses e esteve entre eles durante dois anos desde 1921. Depois estudou e escreveu um completo e minucioso relato histórico com milhares de páginas.
Pesquisando em seus arquivos, encontramos, na caixa que continha os pertences das gavetas da escrivaninha de seu gabinete, uma pasta de cartão pardo, trazendo impresso no alto o timbre: “S.CANUTO ABREU – advogado”.
E, escrito abaixo a lápis, de próprio punho, como descrição do autor, “Canuto Abreu”, e, como título do artigo, “O Espiritismo e as religiões” Por fim anotou: “São Paulo, 1934”. (https://espírito.org.br/autonomia/espiritismo_e_religião_32pgs).
Esse artigo, documento datilografado por ele próprio, ficou arquivado em sua gaveta por 84 anos e nunca foi lido, nem mesmo por sua família. Ficou completamente inédito até hoje. E seu conteúdo é absolutamente surpreendente por sua profunda lucidez, alterando o que imaginávamos no senso comum sobre o legado de Canuto. Foi essa a impressão causada ao virar suas páginas.
Canuto Abreu, em seu artigo “O Espiritismo e as religiões”, afirma que “no Espiritismo a ciência precede a fé”. Ou seja, a compreensão racional da Doutrina Espírita, com base na ciência, é o fundamento da crença, portanto, da fé racional. Esse pensamento está coerente com Kardec, como se pode constatar na explicação de São Luís, na Revista Espírita, ao comentar a chegada a obra A Gênese em 1868:
A  religião antagonista da ciência, respondia, pelo mistério, a todas as perguntas da filosofia cética. Ela violava as leis da Natureza e as torturava à sua fantasia, para dela extrair uma explicação coxa de seus ensinos. Vós, ao contrário, vos sacrificais à ciência; aceitais todos os seus ensinos sem exceção e lhe abris os horizontes que ela supunha instransponíveis. (Kardec, [RE], p. 39)
E então Canuto completa, afirmando que “essa fé se objetiva no reconhecimento de um Deus. Em Deus pressupõem-se atributos, leis morais e a regência de nossos destinos. Toda moral espírita tem por alicerce Deus”. Esse estudo de Deus não é exclusivista, nem pressupõe um Ser que age arbitrariamente, mas sim por leis. É o Deus estudado pelo Espiritualismo Racional, na ciência filosófica denominada teodiceia, na universidade e nos liceus do século 19. Dessa forma, Canuto pôde concluir que devemos distinguir agora “entre religião e ciência, e bem assim entre religião de Deus, comum a todos, e a religião dos profetas, segundo as predileções de cada um”. Pois fazer uso de uma definição filosófica de Deus para fundar uma crença racional atende a todos os espiritualistas. Por outro lado, seguir um determinado profeta e sua visão particular de Deus causa o exclusivismo, o antagonismo que divide e isola em seitas inimigas.
Continua o artigo afirmando que “a religião se baseia na fé, a ciência em leis, as leis em provas. […] como, pois, subordinar ao Cristo ou a qualquer outro iluminado o fenômeno espírita, anterior a eles, e deles independente, como as leis da natureza? É possível fazer de tudo motivo de religião”. Ele continua: “Não admira, pois, que alguns místicos fazedores de religiões, queiram personificar no mártir a filosofia espiritualista […]. Confinar a obra gigantesca [de Kardec] ao estreito âmbito das crenças religiosas, reduzi-la a discussões bizantinas sobre o corpo de Jesus, sobre os atos dos apóstolos, sobre versículos dos evangelistas, sobre as inúmeras interpretações da bíblia em espírito e verdade, interpretações nas quais cada um se fez juiz desse espírito e dessa verdade; querer apoiar a nova revelação nas escrituras sagradas, cujas doutrinas, digam o que quiserem, estão em contradição com os seus princípios cardeais, é de um lado juntar novas seitas protestantes ao número considerável das que já pululam no planeta, e de outro desconhecer, desvirtuar, negar a ciência filosófica de que se dizem arautos”.
O pesquisador denuncia que subordinar o Espiritismo às escrituras da Bíblia de forma teológica, o transformaria numa seita protestante. Enquanto, em verdade, a Doutrina Espírita trata-se originalmente, de uma ciência filosófica, como vimos.
Canuto Abreu podia tratar desse assunto com autoridade, pois não só se dedicara ao estudo profundo do Espiritismo, recuperando sua origem na França, com os pioneiros, como também estudara profundamente o Evangelho. Conhecia latim, grego, aramaico e copta. Traduziu do grego a primeira versão dos Evangelhos. Sua biblioteca de cristianismo, judaísmo e religiões é extensa e rara. Além de ter estudado religiões comparadas na Sorbonne, em Paris.
Jesus, na obra de Kardec, surge nos ensinamentos dos Espíritos como exemplo de comportamento moral, mas não como profeta do Espiritismo. Portanto, como bem define Canuto, a Doutrina Espírita não se filia à tradição religiosa cristã, mas explica fatos do Evangelho como fenômenos espíritas e naturais. Desse modo, a Teoria Espírita atende a todos os espiritualistas, mas não se submete a nenhum exclusivismo religioso. Como afirma Canuto: “Em suma, tenha cada indivíduo a sua religião; deve tê-la, é uma consequência da Doutrina, mas não queira impingi-la como religião do Espiritismo, tirando a este, como ciência que é o seu cunho de universalidade e a sua força de infiltração em todas as inteligências, onde quer que exista um ser pensante”.
Canuto Abreu avança em seu estudo apontando também aqueles que pretendem inovar no estudo do Espiritismo, associando a ele os mais variados conceitos alegóricos: “A mística foi sempre uma fonte de heresias. Fazer de Jesus, de Shinto, de Buda, de Maomé, filhos de Deus no sentido literal. Dar a Deus, criador dos Espíritos, funções sexuais de reprodutor animal, equipará-lo à nossa organização animal, dividi-lo em três, como fizeram os padres.[…]. E pretender-se envolver o Espiritismo nessa embrulhada fantástica de deuses, inová-lo[supostamente] fazê-lo evoluir, como os sacerdócios têm feito evoluir as mais belas religiões, controvertendo-as, enxertando-as de heresias”. E então Canuto conclui clamando: “Oh! Não! Deixai estar o Espiritismo como ele nasceu. No Espiritismo a ciência precede a fé; ciência dos fatos, de fenômenos, de realidades que falam à razão dos mais incultos. No Espiritismo a ciência é a base, a raiz, a seiva, a força, o tronco de que ele é flor e fruto. Sem o seu conhecimento, a fé raciocinada não podia existir”.
Como bem compreendia o surgimento da Doutrina Espirita em suas pesquisas nas obras fundamentais anotadas pelos pioneiros, conhecia suas ideias e advertências, histórias e explicações dadas pessoalmente, pôde definir que “data daí a fundação do Espiritismo, isto é, da ciência espiritualista que orientou as inteligências no estudo de tais fenômenos. É, pois, acontecimento recente”. Desse modo, é ciência que “necessariamente não é privativa de nenhum povo, de nenhuma raça, de nenhuma religião, de nenhum indivíduo.[…] não depende de seitas nem de vontades. Existe por si mesma como parte da natureza. É, portanto, universal”. Ou seja, “a Ciência Espírita, nas suas bases e generalizações, é completa; nada de essencial ao nosso aproveitamento foi esquecido”.
Referência:
1- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo/Paulo Henrique de Figueiredo — São Paulo (SP): Fundação Espírita André Luiz, 2019.