O que os espíritas precisam saber III

12 de Outubro de 2024 Não Por Sergio França Martins

Os trechos publicados são do livro Autonomia a história jamais contada do espiritismo do autor Paulo Henrique de Figueiredo.
A surpreendente denúncia de Canuto
Avaliando as circunstâncias do movimento espírita em 1934, Silvino Canuto Abreu, após suas profundas análises do desvio ocorrido ao Espiritismo originalmente proposto por Kardec, das quais oferecemos trechos, afirmou na parte final de seu artigo inédito “O Espiritismo e as religiões”:
Por não querer seguir os preceitos de Kardec, é que a Diretoria da Federação Espírita Brasileira tem semeado de incoerências a doutrina, desorientando os grupos que se deixam embair por mistificações emanadas de falsas autoridades, aceitas de pronto sem maduro exame. Até comunicações eivadas de ignorância e misticismo, ou de erros crassos, facilmente reconhecíveis, por violarem as leis físicas e os fundamentos da Doutrina que dizem professar, eles as aceitam como ouro de lei, dando-lhes curso. E à semelhança dos católicos que, a despeito de fraudarem a obra do Nazareno, continuam a se proclamar cristãos, assim aqueles reformadores, renegando os princípios básicos da filosofia espiritualista, continuam a se dizer discípulos de Kardec.
E tão longe levam a sua intransigência que, não contentes com serem religiosos, pretendem fazer de suas crenças a religião do Espiritismo. É sempre a mesma incompatibilidade do fanatismo com a ciência; à força de  querer aumentar os seus santos, o místico não recua diante do absurdo e, suprimindo a razão, coloca-os acima do próprio Deus.
Continua Canuto:
Do erro inicial, surgem às vezes graves consequências. O Espiritismo entrou no Brasil por adesão de algumas inteligências corajosas, de entre as quais se destacavam pelo ardor combativo os doutores Bezerra de Menezes, Dias da Cruz e Bittencourt Sampaio. Infelizmente os hábitos devocionais trazidos da Igreja por aqueles lidadores, preponderaram na sua nova orientação, imprimindo-lhe uma feição cultural em desacordo com a Doutrina. Ao parecer deles (e tal foi o erro inicial), não se podia ser espírita sem ser forçosamente devoto de Cristo. Assim, uma questão de fé estranha à ciência, tenderia desde logo a abrir cisões entre adeptos procedentes de outras igrejas que, sem prejuízo da Doutrina, tinham direito a seguir uma orientação acorde com os ditames de sua consciência. Nasceu daí a falsa concepção de um Espiritismo sectário. Retomando a herança daqueles campeões, a Federação Espírita concebeu o plano de nacionalizar a nova filosofia, dando-lhe uma interpretação brasileira e esperando impingi-la ao resto do mundo como sendo a verdadeira doutrina. É como se alguém pretendesse criar uma álgebra brasileira, uma química nacional, uma astronomia americana, uma anatomia para uso particular de nossa raça.
Na verdade, se a alma brasileira fosse distinta das outras almas, e se todas diferissem nos seus atributos, nos seus instintos e na sua fenomenologia, seria admissível para cada indivíduo, raça, povo ou seita um Espiritismo particular, o que implicaria a impossibilidade de sua generalização.
Que fizeram os inovadores? Com o fundamento de aperfeiçoarem a Doutrina de Kardec, adotaram a extravagância religiosa de Roustaing, já fulminada pelo mestre com argumentos irrefutáveis, ao vir à luz. O Jesus fluídico daquele escritor fascinou a nova seita, centralizando a concepção de um espiritismo beato, tão inconsistente e falso como o fantasma que o encabeça.
A reação dos ortodoxos tinha de vir, e veio, contra essa impostura sinistra que, repulsada de toda parte do mundo, encontrou guarida no seio da Federação. Exigia a coerência que os membros dessa associação se declarassem desligados do Espiritismo e adotassem uma denominação mais apropriada à sua corrente de ideias, pois não é compreensível que, tendo endossado uma doutrina golpeadora da lei da reencarnação, se digam fiéis à Doutrina de Kardec.
Lembre-se que Canuto era a mais abalizada  testemunha para afirmar o que ocorria no movimento espírita do mundo e do Brasil. E então, continuando, ele conceitua:
De fato, Roustaing é a antítese de Kardec. Em Kardec há uma ciência, em Roustaing não há ciência alguma. Em Kardec não há milagre, nem dogmas; em Roustaig só há milagres e dogmas. Em Kardec tudo se passa dentro da natureza; em Roustaing tudo se passa fora da natureza. Em Kardec há princípios definidos; em Roustaing não há princípios. Em Kardec há bom senso, unidade e lógica; em Roustaing confusões e disparates. Em Kardec tudo se prova, tudo se verifica, tudo desafia a observação experimental, motivo pelo qual é ciência e convence; em Roustaing tudo é indemonstrável, inverificável, sobrenatural, oposto à razão. Em Kardec os fatos se harmonizam com as leis e com a concepção de um Deus; em Roustaing os fatos brigam com as leis e com a Providência Divina. Em Kardec, Jesus é um espírito puro, reencarnado na Terra, não já para expiar faltas passadas, mas em cumprimento de uma sagrada missão; em Roustaing, Jesus é uma exceção à lei fundamental da reencarnação, e consequentemente a negação dessa lei. Em Kardec, Jesus, homem, nasceu e vive como todos os homens, como eles padece a morte corporal; em Roustaing, Jesus é um homem aparente que não nasceu de mulher, uma entidade sui generis, feita de fluidos por arte do Espírito Santo no corpo de Maria, cuja gravidez e parto foram de ficção para que nelas se cumprissem as lendas da Escritura, sendo assim Maria mãe sem filho, e Jesus um fantasma vivo que nasceu e não nasceu, e todavia existiu; um ser sobrenatural que, escapando a todas as leis da fisiologia, apareceu pequenino, mamou, cresceu e durante 33 anos viveu fluidicamente, a engazopar o gênero humano, fazendo jejuns, ele que só fingia comer, sofrendo sede, ele que só em aparência bebia, valendo-se de sua natureza ilusória para simular padecimentos que não podia em verdade sofrer.
Tudo isso, entretanto, não impediu que Roustaing e seus discípulos o considerassem mártir para os efeitos finais de sua religião.
Roustaing não teve ao menos o mérito da originalidade. O que ele apresenta como revelação dos Evangelhos e apóstolos à sua pessoa é uma velha criação mística de Marcion de Sinope nos começos do século 2, revivida no século 4 pela seita dos Apolinaristas, e novamente anatematizada pela Igreja. Eis a heresia que o senhor Roustaing desenterra da poeira dos tempos, acobertando-a com a autoridade daqueles oráculos, certos de que os Espíritos não se dão ao incômodo de vir à Terra desmascarar as mistificações que em seu nome praticam.
Dessa hibridez do Espiritismo com a superstição e o sobrenatural só poderia resultar um tecido de incongruências. Não se chega a saber o que aquilo é. O Deus de Kardec é uno, insexual, criador de Espíritos, mas não reprodutor de corpos e deuses; Roustaing considera Jesus descendente direto de  Deus, um desdobramento de seu ser, um seu igual. Seus adeptos combatem os dogmas católicos, e aceitam os dogmas da trindade e da virgindade de Maria, tão inconcebíveis ambos que os próprios padres os qualificam de mistérios, e têm por grave pecado discuti-los. Encapando os dogmas da trindade e da virgindade, instituídos séculos depois da morte do Cristo, os adeptos de Roustaing, segundo  o princípio de que um absurdo maior justifica o menor, deviam encampar também o dogma da infalibilidade e, no entanto, rejeitam-no.
As inconsequências, porém, não param aí. Os discípulos de Roustaing se dizem monoteístas, mas, aceitando a multiplicação dos deuses, se emparelham aos politeístas.
Isto no que concerne à religião. Com relação à ciência, o dissídio é maior. Que os padres no interesse de sua Igreja, em matéria de fé, e a despeito dos testemunhos evangélicos sobre o nascimento de Jesus e de seus irmãos, afirmem que a virtuosa esposa de José continuou virgem, compreende-se, visto colocarem a Igreja acima dos fenômenos invariáveis da procriação; mas que o venham dizer inteligências emancipadas, que não podem sem afronta à coerência e à razão desconhecer a inflexibilidade das leis físicas, é abusar demais da própria ingenuidade.
E Canuto Abreu conclui, afirmando:
Mas basta. Crenças respeitam-se. Dessa seita protestante, não me ocuparia decerto, se a não pretendessem cobrir com a bandeira do Espiritismo. Quem a segue, abandona Kardec. O Espiritismo e Kardec, fundado em fenômenos e provas, decorrente de leis, só reconhece na ordem moral um Deus. É uma Doutrina lógica, íntegra, da dualidade da vida, perecível em parte, em parte imortal, uma matéria palpável, outra, astral e imponderável, onde reside a individualidade. Da união e ambos pelo laço do perispírito, pertencente ao astral, nasce a vida do corpo. O espírito é o renovador eterno do ciclo vital. Encarnação, sobrevivência, reencarnação, expiação, aperfeiçoamento, ascensão a outros mundos mais puros e mais felizes, tais as fases dos destinos da criatura através dos tempos. Essa lei do progresso não sofre exceção. Desse desdobramento sucessivo da existência em novas existências, que se adiantam de grão em grão, surgem as elites celestiais e o consequente  aparecimento em várias épocas de enviados do Altíssimo, encarnados ou não, com a missão de impulsionar o adiantamento moral dos povos. Espiritismo aceita tais enviados como entes superiores, mas não lhes dá foros de descendentes do Eterno. Deus não tem prole.
Deixemos, portanto, os sectários de Roustaing como seu Jesus fluídico, e fiquemos com o outro de carne e osso. A este o nosso culto de veneração; a cruz é um símbolo apenas, síntese representativa de uma vida de virtudes e ensinamentos morais. Fisicamente, milhões de criaturas têm padecido mais que o Cristo. e ainda outros hão de padecer; as tochas vivas de corpos nus, untados de pez, pregados a cruzes, e ardendo lentamente nos jardins de Nero, os mártires da inquisição, muitos entes torturados, dia e noite, meses e anos, por enfermidades crudelíssimas ou em lôbregas prisões, sofreram muito mais. Não é, pois, na tragédia do Gólgota que está a religião, nem no sofrimento do corpo a santidade do espírito. É, sim, nas virtudes praticadas, seja qual for o credo teórico. Daí a finalidade da ciência espiritualista. É no conhecimento da alma e de seus destinos, ciência mãe, que havemos de fundar nossas crenças.
O Espiritismo, em suma, é o campo neutro de todas as religiões. Por isso mesmo que a alma é um ser, os seus fenômenos se classificam no ramo das ciências físicas e naturais. Existe o desconhecido, o sobrenatural é um mito. Tudo o que a nós se manifesta, por maravilhoso que pareça, está ipso facto contido na natureza. A Natureza é o Universo infinito, e desse infinito o nosso conhecimento é tão pequeno ainda que o podemos comparar ao nada.
A certo assistente de nossas sessões, disse uma vez o guia do médium: — O Universo é para os Espíritos desencarnados o que é para vós o tamanho desta sala.
Frase hiperbólica, de fácil compreensão. Em menos tempo que o necessário para percorrermos um estreito recinto, os Espíritos percorrem as esferas e, por mais que as percorram, terão andado tanto no infinito como nós em relação ao espaço e às coisas contidas no âmbito de uma sala.
Que ensinam os Espíritos na ordem moral? A caridade. Que pregou Maomé? A caridade. E Confúcio? A caridade, sempre  a caridade. Tal o pensamento dominante dos fundadores das igrejas. Que importa que falsos ministros de Deus façam dessa virtude um motivo para ódios, perseguições e guerras?
É tempo de pôr as coisas em seus devidos lugares. “O Espiritismo não é em si mesmo uma religião, nem pretende substituir-se a nenhuma seita religiosa, respeita a todas”, disse categoricamente Allan Kardec. E soube o que disse. As religiões são necessárias, e correspondem a determinadas mentalidades de povos e civilizações; todas têm um fundo comum. Expurgado de excrescências e dogmas irracionais, o catolicismo é imortal em Cristo, como o budismo em Buda, o islamismo em Maomé, o judaísmo em Moisés, e as demais religiões em seus profetas e fundadores. É possível, pois, ser um verdadeiro espírita e conjuntamente um bom cristão, um bom maometano, um excelente brâmane.
A ciência física, simples ou complexa , é uma só, e onde estiver a alma em qualquer ponto do Universo, aí está, quer queira, quer não a ciência espiritualista, apresentando invariavelmente os mesmos fenômenos, obedecendo sempre a princípios eternos. É coisa independente de ritos e sacerdócios. Estes podem variar, evoluir, reformar-se ou desaparecer; as leis da alma, estas são fixas, imutáveis como as demais leis da natureza.
Ao espírita que importam os rituais do culto externo, as abluções do maometano, o cerimonial das sinagogas? Pratique ele o mandamento da caridade, e deixe a cada indivíduo a crença que o consola. Quanto aos erros introduzidos pelo misticismo e pelos interesses materiais na obra dos fundadores das Igrejas, quanto aos abusos individuais e às  disciplinas que violentam os sentimentos naturais, pondo em conflito a virtude e o homem, a saúde e o culto, a razão e a fé, quanto a essas aberrações que se desenvolvem no seio dos sacerdócios, a reação virá dos próprios crentes. O Espiritismo é neutro. No meio dos cismas que ele há de levantar nas igrejas que o queiram desconhecer e perseguir, a sua atitude deve ser a de serena indiferença.
Referências:
1- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo / Paulo Henrique de Figueiredo — São Paulo(SP): Fundação Espírita André Luiz, 2019.