O que os espíritas precisam saber IV

26 de Outubro de 2024 Não Por Sergio França Martins

Continuamos a publicar trechos do livro Autonomia a história jamais contada do Espiritismo do autor Paulo Henrique de Figueiredo.
O tradicionalismo retrógrado fundamentado na tradição mística
Em 1934, com a amplitude de seu conhecimento sobre o Espiritismo na França e no Brasil, Canuto Abreu estava credenciado para tão importante denúncia sobre o desvio do movimento espírita por meio dessa entidade que indevidamente se apropriava do nome Espiritismo, sem se filiar aos conceitos fundamentais da Doutrina desenvolvidos por Allan Kardec. Mas, em virtude das circunstâncias, seu valoroso artigo aguardou incógnito por 85 anos. O que teria mudado desde aquele tempo?
O que mudou foi o fato de o desconhecimento da história ter se ampliado. Já a Federação Espírita Brasileira continua a publicar e a cultuar Os quatro Evangelhos de Roustaing, em seus estudos semanais, ritualisticamente desde de 1902.
O movimento espírita brasileiro, em geral, salvo raras exceções, desconhece Roustaing e mesmo os demais personagens citados. Todavia, o desvio representado por misticismos, dogmas, incoerências, imitados da teologia da Igreja advindos dessa mistificação continua como uma indigesta tradição secular. Sem conhecimento consciente da origem desse desvirtuamento, as falsas ideias de pecado original, queda, reencarnação como castigo, carma, salvação pelo sofrimento, superioridade divina do Cristo, ideias implantadas pelos Espíritos mistificadores, ainda não repetidas, como espólios das gerações anteriores.
O tradicionalismo retrógrado fundamentado na tradição mística se ampliou e generalizou no movimento espírita brasileiro, como um cavalo de Troia. O motivo é o mesmo que seduziu os diretores da FEB do século 20: “Por ficar no meio-termo entre a Doutrina  racional presente nas obras de Kardec e a tradição das religiões do velho mundo”.
Nos tempos de Allan Kardec, a maioria dos espíritas era advinda do Espiritualismo Racional, do qual o Espiritismo foi o desenvolvimento. Já no Brasil, a quase totalidade dos espíritas vem das religiões tradicionais, principalmente do catolicismo. E isso até hoje. Em virtude dessa origem religiosa, os dogmas de pecado, castigo, perdão pelo sofrimento, a ideia de um Deus humanizado, todo o universo católico e mitológico reproduzido pelo roustainguismo dão um falso conforto da continuidade, de aceitação passiva, para aqueles doutrinados desde a infância pelo catecismo.
Para tornar a religião um instrumento de denominação do povo, explica Kardec que “ela não poderia ser discutida, assim como as ordens de um soberano. Disso resultou o princípio da fé cega e da obediência passiva” (Kardec, [1868] 2018, p. 113). A religião foi instrumento para tornar os indivíduos submissos, temerosos de uma condenação, sentindo-se culpados e dependentes de um perdão divino. Os falsos profetas alcançam suas ambições “valendo-se do prestígio dessa denominação, exploraram a credulidade em proveito do próprio orgulho, da própria cupidez, ou da preguiça, achando mais cômodo viver à custa dos enganados”(Ibidem), afirma Kardec. Culpa: jamais esse sentimento deve ser oferecido a quem procura o Espiritismo! Pois Kardec propõe a completa inversão desse comportamento: a atitude proativa da autonomia moral, valorização da diversidade; dever como ato voluntário, consciente e independente de recompensa ou castigo; igualdade de oportunidade e educação para todos; livre exame, fé racional, solidariedade participativa; liberdade de pensamento, opinião e crença. Ou seja, o inverso da espera passiva por uma libertação divina. O verdadeiro espírita age pela caridade desinteressada, que resume todos os seus deveres. Seu sentimento é o de uma feliz esperança, coragem, acolhimento, certeza racional da conquista futura.
Apesar de o relato dos fatos históricos do desvio no século 20 pelos diretores da FEB ter ficado esquecido, os ecos dessa mistificação continuaram e se expandiram, tornando-se uma execrável tradição. E quando se divulga, como conceituou Canuto “a falsa concepção de um Espiritismo sectário”, o público recebe a infiel orientação da obediência passiva equivalente às religiões tradicionais. E normalmente os dirigentes e expositores também se encontram submetidos ao pensamento anacrônico, desconhecendo a verdadeira teoria liberal proposta originalmente por Kardec.
Como em qualquer ciência, quem se propõe a assimilar a Doutrina Espírita, quanto mais a ensiná-la, antes deve estudar dedicadamente todo o conjunto da obra de Allan Kardec, que compreende seus livros e também a coleção da Revista Espírita, editada por ele desde janeiro de 1858 até março de 1869. Agora estamos diante de um acervo amplo e riquíssimo, contendo milhares de manuscritos originais do século 19, em sua maioria de próprio punho de Kardec. Além de 50.000 registros de depoimentos, documentos e pesquisas históricas elaboradas pelo pesquisador Canuto Abreu, durante décadas, sobre o movimento espírita na França e também no Brasil. E uma enorme quantidade de novas fontes primárias surge a cada dia, neste período determinante para o restabelecimento do Espiritismo em sua proposta original.
Quem desconhece a história torna-se escravo do passado, impotente para interpretar o presente. É imprescindível recuperar as narrativas, por mais dolorosas que tenham sido. Só quando se entende o presente pelas luzes do passado é possível construir um futuro diferente.
A ovelha negra
Em 1921 e 1922, Canuto Abreu, investigando  a história do Espiritismo, surpreendeu-se com os relatos reveladores de fiéis e dedicados pioneiros, como Delanne, Flammarion, Sausse, Léon Denis. Conversou longamente, examinou cartas e documentos, anotações manuscritas, nas diversas visitas. Pôde percorrer as obras nas estantes particulares, verificar notas às margens das páginas. Foi a única testemunha a registrar notas do grandioso acervo elaborado por Allan Kardec para a constituição futura da história do Espiritismo, que décadas depois teria seu paradeiro perdido. Ouviu deles sobre as terríveis dificuldades que a sucessão do movimento espírita francês sofreu após a morte de Allan Kardec em 1869, além das que ele próprio enfrentou durante a elaboração da Doutrina.
Pesquisando no acervo de Canuto sob a guarda do CDOR-FEAL, páginas de grande valor vão surgindo entre os milhares de documentos. Reunindo os fragmentos, vamos oferecer ao leitor valiosos e esclarecedores achados históricos das suas crônicas, artigos e registros inéditos.
Antes, algumas reflexões preliminares.
No período da elaboração filosófica do Espiritismo, pela necessidade de uma investigação coesa para a determinação dos conceitos fundamentais da Doutrina, a direção teve que ser individual. Explica Canuto que “a unidade doutrinária não podia emergir senão do estudo comparativo e meditado dos resultados parciais de muitas consultas, e exigia por isso a concentração dos trabalhos numa só pessoa; acabada a tarefa de elaboração, pelo menos no concernente às questões basilares, e firmados para sempre os princípios gerais da Ciência Espírita em leis naturais, o Espiritismo deveria ser entregue a um grupo de homens que o levassem intacto a todas as partes do mundo. Aí estava por que o chefe atual do movimento, inspirado pelos guias, projetava passar o comando, não a um sucessor individual, mas a uma fundação. O peso dos trabalhos, na próxima fase, excederá as forças de um só”.
Nunca foi fácil o trabalho pessoal de Allan Kardec para manter o Espiritismo no caminho, conforme a orientação dos Espíritos superiores. Entre as caixas de documentos, encontramos o seguinte relato dos pioneiros, segundo Canuto Abreu: “Durante a elaboração, surgiram homens bem-intencionados que entraram no movimento com a aspiração de medianizar a terceira revelação. Outros, porém, ambiciosos, não podiam tolerar que Allan Kardec preponderasse, sozinho, na chefia do movimento. Queriam a todo custo ligar seus nomes à Causa, ainda que para isso fosse mister fazer ‘inovações’. Como a vaidade é a sombra do Orgulho, muitos adeptos do Espiritismo não quiseram ocupar posto secundário, e desligaram-se para tentar ‘novas correntes’. Como o amor-próprio é a sombra da Ambição, outros não puderam suportar o prestígio crescente do mestre, e o guerrearam por detrás e pelos flancos, minando–lhe a estrada de intrigas e calúnias. […] mas, à medida que a Doutrina foi se organizando. os sistemas dissidentes foram caindo no esquecimento. O chefe cuidava de elucidar todas as partes da Filosofia, dando precisão e clareza a seus princípios e normas, a suas hipóteses e conclusões, nada deixando no ‘vago’. E repetia, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas: — Quando se disser redondamente, precisamente, sem nenhuma ambiguidade, que dois e dois são quatro, ninguém mais pretenderá afirmar aos simples que, no Espiritismo, dois e dois são cinco. Esse resultado só poderá aparecer fora da Doutrina”.
Canuto continua seu relato nas notas históricas de seus manuscritos descrevendo a quais perigos o Espiritismo ficaria sujeito caso alguém assumisse pessoalmente a função de substituir Kardec na condução do Espiritismo:
Outra dificuldade na sucessão individual [de Kardec] seria o perigo da astúcia ao serviço da cupidez ou da malícia. Não faltariam intrigantes, supostos espíritas, guiados pela cobiça ou por segunda intenção. Sob a falsa aparência de adepto, fingindo qualidades de coração e de inteligência, um refinado aventureiro, desejoso de viver à custa de papalvos, poderia insinuar-se no meio do rebanho, com pele de ovelha. Esse ainda não seria tão perigoso como aquele que, com disfarçada má-fé, encobrisse o intuito de fazer o navio desviar-se da rota e encalhar-se nos recifes. O embuste, duma ou doutra espécie, se tornará cada vez mais possível à medida que o Espiritismo se for tornando uma força religiosa.
Esse era o grande perigo.
Chefe do Espiritismo! Kardec ficou muito preocupado com a tendência popular de se eleger um monarca para toda coisa, e o Espiritismo corria esse risco, o que seria um desastre:
Se ele se impuser com sua autoridade privada, será aceito por uns, rejeitado pelos outros, e vinte pretendentes podem surgir que levantarão  bandeira contra bandeira; isso será, ao mesmo tempo, o despotismo e a anarquia. Um tal ato seria o fato de um ambicioso, e nada seria menos próprio do que um ambicioso, por isto mesmo orgulhoso, para dirigir uma Doutrina baseada sobre a abnegação, o devotamento, o desinteresse e a humildade; colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, ele não poderia senão falsear-lhe o espírito. (Kardec, [RE] 1868,p. 247)
Mesmo que alguém reunisse todas as qualidades para o seu mandato, depois de um bom pode vir um mau, e conclui Kardec: “Sem maus desígnios, ele pode ter objetivos mais ou menos justos. Mas, se quiser fazer prevalecer suas ideias pessoais, poderá fazer a Doutrina desviar, suscitar divisões, e as mesmas dificuldades se renovarão em cada mudança” (Ibidem).
O pior de todos os pretensos chefes, porém, seria o que alegasse ter sido eleito por Deus! Dizer-se escolha dos Espíritos, com a pretensão de um messias, o que Kardec define como “tola presunção se for de boa-fé, ou uma insigne impostura” (Ibidem).
Infelizmente, após a condução lúcida do professor Rivail, foi exatamente esse desvio que ocorreu tanto na França quanto no Brasil. A ambição tomou conta de pretensos messias no movimento espírita, indivíduos declarando-se visionários, profetas, continuadores, herdeiros, reformadores, médiuns escolhidos, todos portadores de pretensas missões divinas, na loucura de liderar e tomar para si o nome da Doutrina Espírita. Sabendo dessa tendência, Kardec preveniu os espíritas desses lamentáveis episódios:
Não faltarão intrigantes, supostamente espíritas, que quererão se elevar por orgulho, ambição ou cupidez; outros que exibirão pretensas revelações com a ajuda das quais procurarão colocar-se em relevo e fascinar as imaginações muito crédulas. É preciso prever também que, sob falsas aparências, os indivíduos poderiam tentar se apoderar do governo com o pensamento determinado de soçobrar o navio em o fazendo desviar-se de sua rota. Ele não naufragará, mas poderá experimentar deploráveis atrasos, que é preciso evitar. Aí estão, sem contradita, os maiores escolhos dos quais o Espiritismo deve se guardar; quanto mais ele toma consistência, mais seus adversários lhe endereçarão armadilhas. (Kardec, [RE] 1868, p. 247-8).
Kardec deixou bem claro que durante o período de elaboração, que durou de 1857 a 1859, “a direção da doutrina deveria ser individual”. Pois seria preciso que os elementos surgidos numa multidão de grupos convergisse para um só centro para serem controlados, colecionados. “E que uma única pessoa presidisse à sua coordenação para estabelecer a unidade no conjunto e a harmonia em todas as partes. “Senão suas partes não teriam o necessário entrosamento. Quando a fase de elaboração terminou, “a direção, de individual que deveu ser no começo, deve se tornar coletiva”. (Kardec, [RE] 1868, p. 249).