O que os espíritas precisam saber V
Continuamos com a publicação dos trechos do livro intitulado Autonomia a história jamais contada do Espiritismo do autor Paulo Henrique de Figueiredo.
O inimigo invisível está vigilante
Em meio às crônicas elaboradas por Canuto Abreu fundamentadas em fontes primárias, encontramos as seguintes notícias:
Amélie Boudet, aos 74 anos, como maior acionista, escolheu dois diretores entre os mais constantes amigos do mestre. Desliens e Bittard. Os diretores não recebiam honorários: davam de graça o que de graça receberam. Os lucros líquidos destinavam-se à “Caixa Geral e Central do Espiritismo”. Dessa forma, a Livraria Espírita tornou-se, desde 1° de agosto de 1869, o centro de divulgação do Espiritismo no mundo: editava com exclusividade as obras fundamentais, a Revista Espírita. A intenção era criar uma representação por duas sociedades, e não por uma pessoa física: “Nem a viúva nem pessoa nenhuma tem o direito de inculcar-se chefe do Espiritismo. O Espiritismo não depende de nenhum homem, como também de nenhum espírito. Repousa em leis eternas cujos princípios constam de O Livro dos Espíritos e foram desenvolvidos nas demais obras de Allan Kardec. A Société Anonyme (Sociedade Anônima) formada para propagar essas obras e a Société Parisienne (Sociedade Parisiense) mantida para as elucidar e orientar os adeptos são meras coordenadoras do Movimento”. Assim pensavam os verdadeiros amigos da Causa, narrou Canuto, e continua: “Mas o inimigo invisível estava vigilante e rondando a cidadela do Espiritismo, à espreita dum ensejo de tomá-la de assalto para lhe desviar a orientação impessoal traçada pelo mestre e inicialmente seguida pelos discípulos. A constituição legal e definitiva do Espiritismo como pessoa jurídica era um perigo para as velhas instituições sectárias ameaçadas em sua potencialidade e contrariadas em sua intolerância”.
Surge o vento da discórdia e da intriga no seio das duas sociedades visando primeiro desuni-las, depois subdividi-las e afinal aniquilá-las. Inicialmente os discípulos estavam próximos e vigilantes, mas em seguida veio a guerra de 1870 entre a França e a Prússia, quando, temeroso da escalada de poder dos alemães, Napoleão III declarou guerra, em julho daquele ano. Dois meses depois estava preso com seus soldados. Paris foi cercada e tomada. A população de 1871, revoltou-se e estabeleceu o governo pela Comuna de Paris. Após ser paga uma indenização, os prussianos soltaram 100 mil prisioneiros de guerra que, depois de dois meses de luta, esmagaram a Comuna. Somente em setembro de 1873 as tropas alemãs abandonaram a França, encerrando a ocupação.
Durante o período da guerra, o movimento espírita se dispersou. Os mais fiéis discípulos de Kardec precisaram largar suas tarefas para cuidar devidamente da sobrevivência e necessidades de suas famílias. Foi nesse momento de dispersão que a oportunidade para o inimigo surgiu. Após a renúncia e Desliens, o antigo médium Pierre-Gaëtan Leymarie, oprimido pela falência de sua alfaiataria, estava perdido e sem rumo. Explica Canuto Abreu:
Quando ele voltou ao seio dos apóstolos, após a capitulação de Sedan em 1871, era um instrumento dócil à vontade implacável do inimigo e foi por este explorado até o máximo nos seus pontos fracos, que eram a vaidade, a ambição e amor-próprio. Ao cabo de alguns meses, captando lentamente a confiança da viúva com insinuantes comunicações atribuídas ao espírito de Allan Kardec, a ovelha negra conseguiu fazer ceder a viúva que lhe delegou plenos e ilimitados poderes ao instrumento do inimigo.
Dispondo do voto da maioria, por ter conquistado diversas procurações dos sócios mergulhados em suas preocupações familiares, denuncia Canuto que “a ovelha negra alterou os estatutos para se tornar o administrador único da Sociedade, da Livraria e da Revista Espírita, além do Caixa Geral. Mudou o nome social para Société pour la Continuation des Oeuvres Spirites d’Allan Kardec [ Sociedade para a Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec].
E, desde 18 de outubro de 1873, o mestre começou a ter, contra a sua vontade expressa em vida e reiterada em numerosas comunicações, numa pessoa física o seu continuador. O Espiritismo passou a ter um chefe. Os oponentes foram exonerados, a Société perdeu sua sede e, em face do Regulamento Policial, teve por isso que se dissolver. O inimigo invisível invadiu triunfante a cidadela. Mas isso não bastava à sua satisfação. Era preciso levar o barco do Espiritismo a alto-mar e encalhá-lo. Sem perda de tempo inspirou ao seu instrumento o rumo da perdição. Piloto bisonho, considerando-se o Cephas (Cephas, latim, derivado do aramaico Képhas, significa rocha, pedra) dos discípulos, o infeliz arvorou a bandeira negra de capitão audaz e saiu para águas grossas sem temor dos elementos nem dos adversários”.
Daqui em diante, a crônica histórica minuciosamente elaborada por Canuto Abreu descreve como Leymarie, por sua ambição, caiu em armadilhas, levando consigo o nome do Espiritismo.
Sacrificando a Causa
Numa aventura destinada a aumentar seus proventos, já que destinara a si mesmo um salário e parte dos lucros da Sociedade e isso não lhe parecia o bastante, envolveu-se numa fraude a partir de falsas fotografias de Espíritos vendidas aos clientes esperançosos de rever seus parentes desencarnados e acabou preso, “sacrificando a Causa que pretendia conduzir, e perdendo-a no escândalo público”. E então, afirma Canuto, “a polícia correcional, após a sentença de 17 de agosto de 1875, cassou o Espiritismo a licença de funcionar como sociedade regular. A imprensa cobriu de lama e irrisão a memória ilibada de Allan Kardec, e de ridículo a viúva octogenária e os pioneiros que procuravam defender a doutrina inocente. Não se dizia em parte nenhuma que Leymarie era o único culpado, mas que ‘de longo tempo os espíritas vêm explorando torpemente a credulidade pública às barbas da polícia que afinal pôs fim a indecência”.
As falsas fotografias tiveram início nos Estados Unidos, William Mumler, desde 1861. Ainda no início da aplicação dessa tecnologia, a dupla exposição era quase desconhecida. O fotógrafo logo percebeu que poderia simular a aparição de Espíritos para ganhar dinheiro, em virtude da credulidade dos espiritualistas. A novidade se espalhou pelo mundo, chegando à França em 1863, como noticiou Kardec, reproduzindo notícia do jornal Courrier du Bas-Rhin:
Os americanos, que nos antecedem em muitas coisas, nos ultrapassam certamente na arte da fotografia e na evocação dos Espíritos. Em Boston, hoje, não só os defuntos são chamados pelos médiuns, mas são ainda fotografados. Deve-se esta descoberta maravilhosa a um senhor William Mumler, de Boston. Há algum tempo, é ele mesmo que conta, tentava em meu laboratório um novo aparelho de fotografia, fazendo a minha própria fotografia; súbito, senti uma certa pressão se exercer sobre o meu braço direito, e uma certa lassidão geral em todo o corpo. “Mas quem descreveria minha admiração quando vi meu retrato reproduzido, e que tinha à sua direita a imagem de uma segunda pessoa que não era outra senão minha prima falecida? A semelhança do retrato, no dizer daqueles que conheceram essa senhora, não deixa nada a desejar.” A consequência disso é que o senhor Mumler, desde essa época, não dá mais aos seus clientes, não só senão sessões espiritualistas, mas executa ainda para eles a fotografia dos defuntos evocados. Comumente elas são um pouco pálidas e nebulosas, e os traços bastante difíceis para se reconhecer, o que não impede aos habitantes de Boston, esclarecidos, de declará-los verdadeiros, autênticos. Quem olharia de tão perto pelas imagens espectrais! ( Kardec, [RE] 1863, p. 62)
Allan Kardec, porém, foi bastante prudente e logo de imediato comentou:
Uma semelhante descoberta, se fosse real, teria seguramente consequências imensas, e seria um dos fatos de manifestações dos mais notáveis; no entanto, convidamos a acolhê-la com uma prudente reserva; os americanos que, no dizer do autor, nos ultrapassam em muitas coisas, nos ensinaram também que nos distanciam de muito na invenção de boatos. (Ibidem)
Não se pode atribuir aos Espíritos todos os fenômenos insólitos que não se podem explicar, afirmou Kardec, pois “um exame atento neles mostra, o mais frequentemente, uma causa toda material que não se tinha percebido”. Para justificar sua opinião, ele relata que, na Inglaterra, o fenômeno da dupla exposição na placa de vidro emulsionada, utilizada para fazer a fotografia, estava sendo utilizada de forma recreativa na mesma época:
Na Inglaterra, alguns artistas exploram essa aplicação bizarra da fotografia; fabricam e vendem imagens duplas, cujos esquisitos acoplamentos produzem efeitos estranhos ou agradáveis. Mostrou-nos, entre outros, um castelo em ruínas acima do qual transparecia seu parque, suas fachadas e suas pequenas torres, tais como deveriam existir antes de sua destruição. Fazem-se ainda retratos de velhos, através dos quais pode-se ver seu rosto tal como era nos mais belos tempos da juventude. (Ibidem)
Ou seja, como logo depois foi denunciado, tudo não passava de uma fraude, com vistas a ganhar dinheiro à custa de ingênuos indivíduos em busca de consolação pela perda de familiares e amigos.
Anos depois, Leymarie percebeu o grande interesse pelas fotografias que impulsionava as vendas da Revista Espírita. Inicialmente comprava fotografias dos americanos, pagando alto preço para reproduzi-las. Mas logo lhe foi apresentado um fotógrafo parisiense, Buguet, para reproduzir o efeito. Uma alta soma foi emprestada da Sociedade para construir um laboratório apropriado. No início as fotografias eram apresentadas como exemplares americanos, mas depois algo muito mais lucrativo se apresentou: oferecer aos leitores fotos exclusivas com os Espíritos familiares. Leymarie agenciava, e Buguet produzia para todos os que recorriam a ele ao preço de vinte francos por seis fotos por pessoa, contrariando todos os princípios reais da mediunidade de efeitos físicos, que é naturalmente intermitente e ocasional. Não se falava de outra coisa, mas o feito atraiu também o exame das autoridades. A fraude foi desmascarada minuciosamente. Havia uma cabine dupla. Na secreta, Buguet fazia uma exposição leve com bonecos, cabeças esculpidas, perucas, tecidos. Depois, levava o vidro novamente emulsionado para a cabine onde o cliente esperava e produzia a dupla exposição. As autoridades policiais, em flagrante, desmascararam toda a pantomima. Funcionários do fotógrafo denunciaram todo o esquema, indicando a participação de Leymarie. Todos foram parar nos tribunais. Buguet, Leymarie e um médium americano que atestava a veracidade dos fenômenos foram condenados. Leymarie cumpriu sentença atrás das grades.
A grande imprensa da França e da Europa explorou por muito tempo esses fatos, e a opinião pública generalizou equivocadamente a mácula de charlatanismo, indignidade e exploração a todos os espíritas. Diariamente, as reportagens relataram o progresso do processo. Muitos espíritas ingênuos, ávidos por atestar as fotografias como uma prova patente de sua crença, deixaram-se levar pelos hábeis fraudadores, referendando a mentira. Camille Flammarion, porém, com sua experiência vasta com o tema, afirmou: “Edouard Buguet, cujas fotografias mostravam as sombras dos mortos e que, tendo me autorizado a fazer experiências com ele, deixou-me pesquisando durante cinco semanas antes de descobrir os seus truques” (Flamarion, 2011, p. 199-200). Muita gente foi iludida, explorada, abalada em sua confiança. Esse triste episódio, jamais esquecido pelos franceses, criou, infelizmente, o hábito de associar o nome dos espíritas a charlatões, fraudadores ou farsantes. Leymarie não colocou em jogo somente a sua reputação, que despencou, mas também a credibilidade do Espiritismo, em virtude do cargo que exercia e da sociedade que representava. Esse episódio alterou decisivamente o futuro da Doutrina Espírita em sua pátria, pulverizando o movimento espírita nas décadas seguintes.
Mas essa terrível condição ainda não era o suficiente para as metas destrutivas ambiciosas do inimigo invisível. Descreveu Canuto, em suas crônicas fundamentadas nos relatos dos pioneiros, que, “depois do escândalo criminal, a librarie adotou outra designação, a de spirite que estava então desmoralizada. O administrador, amargando o abandono em que se viu durante a provação, traçou outro plano. A casa de livros deixou de ser o baluarte do Espiritismo para abrigar em suas muralhas arruinadas toda e qualquer doutrina espiritualista”. A partir desse momento, “a verdadeira filosofia espírita não estava mais somente nos livros de Allan Kardec, para o médium do inimigo”, Leymarie. Ocultismo, teosofia de Blavatsky, ideias de carma e de queda do Espírito, roustainguismo invadiram as páginas da Revista Espírita e das estantes da livraria.
Em busca da fortuna, Leymarie, o representante legal do legado de Allan Kardec, cedeu às investidas de Jean Guérin, o mais próximo e fiel apóstolo do rico advogado Jean-Baptiste Roustaing, que lhe deu a missão de gerir milhares de francos para fazer sua obra e seus conceitos invadirem o movimento espírita, sobrepondo-se à de Kardec. A união entre Guérin, cheio de dinheiro para seduzir, e Leymarie, sedento por ele, estava fadada ao mais completo e infame sucesso. Como vamos relatar mais à frente os pormenores das peripécias que se sucederam, basta assinalar que a estrutura da Sociedade, com o direito às obras e à Revista Espírita, na calada da noite e longe do olhar dos fiéis pioneiros, foi vendida a Guérin 72% das ações da Sociedade em troca de uma casa com jardim valendo 108 mil francos, (Essa venda foi revelada quando a pesquisadora Simoni Privato Goidanich encontrou o documento de registro dessa transação nos Arquivos Nacionais da França. Uma cópia desse documento se encontra em Goidanich, 2017, p. 237) o que lhe permitiu oficialmente usar a Revue Spirite para vergonhosamente atacar Kardec e seus verdadeiros continuadores, além de divulgar a deturpação de Roustaing e os quatro Evangelhos em suas páginas. Na página 95 do livro Autonomia consta o QR-CODE e o endereço (https://espirito.org.br/autonomia/aporte-guerin/ onde vemos o documento original – Aporte de capital de M.J. Guérin, registrado em ata de 26 de março de 1883.
Allan Kardec, nas comunicações recebidas na casa de Amélie, junto à sua fiel e sempre presente amiga e médium Berthe Froppo e demais participantes, deu orientações para que os verdadeiros espíritas se afastassem dessa perdida sociedade pois ela não mais o representava, para formar outra, e criar nova revista, restabelecendo o leme do Espiritismo. Em janeiro de 1881, em Espírito, Kardec alertou:
A doutrina, por assim dizer, ficou adormecida desde a minha partida. Era impossível que fosse de outra forma, já que meu desaparecimento súbito não me deu tempo para realizar os projetos que havia feito e que permitiriam a uma coletividade homogênea continuar o trabalho que havia sido iniciado. Então, as desgraças que surgiram em nossa querida pátria obrigaram cada um a trabalhar materialmente para melhorar a própria situação e a de nosso querido país. Pois deve-se confessar que a maior parte dos espíritas, sendo os primeiros apóstolos, sem possuírem fortuna, tem o dever de primeiramente prover as necessidades diárias de seus familiares. ( Froppo, 1884)
O afastamento dos adeptos mais conscientes, em virtude dos fatos nacionais deixou o campo vazio para o assalto dos desvios. Não havia mais como recuperar as antigas instituições , e um novo plano se fez necessário. Continua Kardec:
Não te disse, Amélie, querida companheira de meus trabalhos, que era para o futuro que tinhas que olhar, por ti, por mim, pelo Espiritismo? Cabe a ti distinguir os espíritas abnegados e devotados à nossa causa desde há muito, que, chamados a continuar a fazer frutificar o que eu semeei, devem, tão logo o momento de agir lhes seja indicado, formar uma sociedade nova chamada a elaborar a continuação das minhas obras. Assim, por ora, consiste em preparar-te para mudar as disposições existentes em favor desta velha sociedade, encaminhando-as àquela que vai se formar e para a qual é sua missão velar. (Ibidem)
Uma nova sociedade, um novo meio de divulgação, recomendou Kardec em Espírito aos seus mais próximos e fiéis sucessores. Apesar da oposição sistemática de Guérin, Leymarie e mais alguns outros poucos opositores; mais de quatrocentos espíritas fiéis à causa de Kardec se reuniram para formar a União Espírita e seu novo jornal, Le Spiritisme, em dezembro de 1882. Enfim, surgia uma tribuna competente e leal para retornar a propaganda consciente da Doutrina Espírita e defender em suas páginas os absurdos ataques que o mestre então recebia na própria Revista Espírita. Os objetivos do novo grupo eram a fidelidade aos princípios básicos do Espiritismo, o mais completo desinteresse material e moral. A fé raciocinada, a coragem moral e a dedicação ao ideal espírita da caridade desinteressada. Oposição aos desvios e práticas equivocadas daqueles que tomaram para seu proveito a Sociedade Anônima.
Referência:
1- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo/ Paulo Henrique de Figueiredo – São Paulo (SP): Fundação Espírita André Luiz, 2019.