O que os espíritas precisam saber IX
Nossa ligação com Kardec é mais profunda do que imaginamos
Em 1952, Canuto já dispunha de extenso relato histórico, desde o passado longínquo, percorrendo a vida de Allan Kardec na Gália, em meio aos ancestrais e precursores conhecimentos dos druidas. Também o período de desenvolvimento da Doutrina, e o terrível plano dos inimigos invisíveis levado a efeito pelos discípulos de Roustaing na França e no Brasil. Em Pedro Leopoldo, por uma semana, Canuto e Chico Xavier entraram nas madrugadas, lendo os relatos inéditos, inteirando-se dos depoimentos, conhecendo o conteúdo dos manuscritos, dos bons e maus momentos.
Em meio às leituras de originais, lembranças do passado e reflexões doutrinárias dos dois amigos, pesquisador e médium, por volta da primeira hora do dia 21 de agosto de 1952, se depararam com a presença da espiritualidade desejando dar a sua contribuição ao momento tão grandioso para a história do Espiritismo. Manifesta-se, pelo lápis de Chico Xavier, o Espírito de Emmanuel, evocando a urgência no serviço de recuperação da proposta original de Kardec e dos pioneiros fiéis, sobre os quais conversaram.
Primeiramente, Emmanuel qualifica as condições de quem vai se dedicar a essa tarefa, nos moldes da postura moral autônoma: “Compete-nos o serviço dos lidadores fiéis. Nem loucos nem aplausos do mundo. Nem facilidades e nem vantagens entre os homens”. Fundamental observação, nem castigo nem recompensa! A profunda mensagem da caridade desinteressada está no ápice das recomendações. Há que se considerar o interesse junto ao orgulho. como principais escolhos dos desvios sofridos pelo movimento espírita. Nessa hora última de restabelecimento, nada disso pode existir entre aqueles que desejam estar entre os batalhadores da regeneração da humanidade.
Antes do tempo presente não havia condições para essa recuperação, observa o Espírito ao perguntar: “Como aguardar de frágeis vergônteas o labor milagroso da frutescência?”. Tudo tem seu tempo adequado, devemos esperar o amadurecimento das pessoas e condições, faz parte do exercício do Bem saber aguardar, considerar o tempo como ingrediente das mudanças.
Podemos imaginar a profunda emoção dos amigos, décadas de luta pela Doutrina Espírita, diante da revelação seguinte de Emmanuel, considerando que sobre a mesa estavam manuscritos de Allan Kardec, peças históricas únicas, ainda inéditas para o mundo. Afirma o Espírito: “As tuas anotações quanto à história dos pioneiros do Espiritismo, não constituem obra do acaso e sim tarefa de elevado alcance moral para a causa que pretendemos defender”. Ou seja, a causa do Espiritismo se esclarece e completa pela obra que deveria ser edificada ao entorno das cartas de Kardec!
Alguns, diante dos fatos novos, chegaram a pensar que tal conjunto de documentos serviria como curiosidade passageira, ou novidade literária, mas não, a descrição seguinte a qualifica em todo seu resplendor e significância: “Não define mero arranjo literário para alimentar os caprichos de leitores famintos de novidade e emoção nem compõe simples tessitura de fios dourados da ficção objetivando efeitos especiais em nossos arraiais doutrinários”. QR CODE – https://espirito.org.br/autonomia/psicografia-chico-xavier-a-canuto
Qual o caráter, então, de tão precioso legado? Continua Emmanuel: “É a revivescência de lembranças que os soldados e operários de nosso Movimento não podem esquecer sob as cinzas, de modo a içarem, cada vez mais alto, o estandarte luminoso da Nova Revelação, confiada aos homens para a glorificação dos nossos mais altos destinos”.
As cartas, as traduções, os artigos de Canuto, as histórias resgatadas dos pioneiros fiéis, a recuperação da moral autônoma, dos ensinos da psicologia espiritualista e das demais ciências filosóficas, todo esse trabalho de restabelecimento tem uma finalidade primordial, “içar o estandarte luminoso da Nova Revelação”.
Em seguida, atentos às alternativas que elevaram a importância do material sob a responsabilidade de ambos, apesar de tão frágeis e insignificantes que se consideravam, recebem uma recomendação que se transfere, atualmente, a todos os espíritas conscientes do material que nos foi confiado, e apenas iniciamos o entendimento.
Imprescindível te mostres digno de tão sagrado depósito, espalhando-lhe as cintilações com todos os trabalhadores da Doutrina de Amor e Luz que há quase um século vem despertando a consciência da Humanidade para a nova era de trabalho e progresso que as trevas debalde procuram rejeitar.
Cabe a todos nós espalhar a luz da verdade que liberta, do entendimento que esclarece a vida e a eternidade. Não é só Espiritismo, é a verdadeira mensagem de Jesus recuperada. Mas o mundo velho ainda, apesar de agonizante, tenta afastar os indivíduos do conhecimento do seu sublime destino. Então, o Espiritismo considera, gravemente: “Árduo é o conflito entre o esplendor da verdade e a sombra cristalizada e fria da Ignorância; todavia na plantação da Liberdade pela obediência à Lei e do Direito pelo Dever, a nossa conduta não pode sofrer qualquer tergiversação”. Não cabe meio termo. Não há instrução para os sábios e falsos ensinamentos para os simples. Cabe a esta hora levar a autonomia para todos, indistintamente. Cada um deve assumir as escolhas de seu caminho, trilhado no terreno da liberdade.
Da Europa, nos chegam eivos aterrorizantes do materialismo ultrajante. De nosso mundo velho, sobrevivem carcaças desvalidas do passado de privilégios de uns e trabalho massacrante de multidões, incluindo os irmãos do continente africano. Toda essa cangalha, merece mergulhar no solo, sobreposta pela terra, tornando-se escombros de um mundo que se vai, do qual restará apenas lembrança. Por isso, assumindo a tarefa de recuperar o Espiritismo como proposta de autonomia, implantando a cooperação, solidariedade e caridade desinteressada, nossa nação, abraçando os lidadores da fraternidade do mundo, tem sim, uma missão:
Ultrajado e esquecido, vilipendiado e espezinhado em muitos setores de nossa cultura de eminências e abismos, encontra no território abençoado do Brasil, novo ninho de segurança e expansão, atendendo aos ascendentes místicos que situaram entre nós o novo Lar do Evangelho Renascente.
Longe de dogmas e desvios que tornaram a mensagem libertadora original de Jesus um monturo sem frutos, a recuperação do Espiritismo original, pode-se afirmar sem dúvida, recobra a verdadeira base do movimento cristão. Nesse sentido, enquanto corriam as lágrimas de esperança, fé e alegria nos rostos dos jovens Canuto e Chico, com as testemunhas da pequena casa de Pedro Leopoldo, naquela mesa onde páginas consoladoras foram recebidas no silêncio das lamparinas, Emmanuel conclui, deixando a missão do restabelecimento profundamente qualificada: “…que o Espiritismo, desde a primeira hora da codificação kardequiana é o Cristianismo redivivo em movimento. Consagrados, pois à tarefa que nos compete desempenhar com o Senhor, avancemos sempre”. Avancemos! A obra não está completa. Apenas começa. A tarefa está chamando a todos. Sejam escolhidos aqueles que se oferecerem sem nada ouvir de fora. O chamado é do coração, o alistamento é voluntário. Sem aplausos, não esqueçamos.
Numa página amarelecida de papel pautado, com uma letrinha miúda mas regular, escrita comum a lápis afiado, Chico grafou: “Pedro Leopoldo, 22-8-52. Prezado amigo Dr. Canuto”. E noticiou o médium ao amigo: “A nossa leitura nas abençoadas horas de sua rápida permanência, junto de nós, trouxe ao meu espírito desconhecido júbilo e luminosas reminiscências como que ressurgem repentinas em meu pensamento, à maneira de relâmpagos dentro da sombra. Visões da Gália de dois mil anos passados e contemplações de quadros espirituais relativos a passado recente me visitam o mundo íntimo”.
Continua Chico então, rogando: “Espero que Jesus me conceda para breve a graça de visitá-lo novamente, a fim de conversarmos mais detidamente sobre as portas espirituais que seu trabalho me abriu. Compreendo, cada vez mais, a nossa necessidade de trabalhar e servir na Grande Causa, que nos irmana. Nossa ligação com Allan Kardec (o grande pontífice do tempo de Júlio César) é mais profunda que possamos, por agora, imaginar, e os nossos compromissos com a Doutrina da Reencarnação e da Fraternidade, à luz do Evangelho, são desafios que os séculos nos lançam à alma, concitando-nos às mais amplas tarefas em nosso campo de redenção. Espiritismo, em nossa vida e em nossos destinos, é uma bandeira de luz, a cuja convocação não poderemos fugir”.
E continua descrevendo a tradição espírita que estavam assumindo: “Que o Senhor nos dê forças para a batalha, porque não creio possa existir para nós a bênção da paz enquanto não oferecemos o nosso testemunho de aplicação com a luz Divina, para nos reunirmos em definitivo, à corrente sagrada dos velhos lutadores que serviram à verdade com sangue e lágrimas dos próprios corações”. Lutadores da Causa foram Amélie, Froppo, família Delanne, Léon Denis, Sausse, casal Rosen, entre tantos que lutaram bravamente para defender a Doutrina liberal de Allan Kardec. Um retorno às origens.
Chico, em seguida, aborda os apontamentos históricos de Canuto que tão profunda impressão causaram em sua atmosfera psíquica. O médium compartilhava as confidências do amigo, e sabia da importância, das inquietantes denúncias e resgates dos pioneiros, aguardando a hora da revelação: “as suas páginas estão impressas em mim e aguardando-as ansiosamente no livro que nos promete, peço a Jesus para que as suas energias sejam multiplicadas no bom combate. Quando lhe for possível, ajude a nossa comunidade a obter os informes precisos acerca dos pioneiros de nossa Redentora Doutrina nas claridades da sua primeira hora. Seu espírito missionário prestará assinalados serviços ao presente e ao futuro de nosso movimento. Esperarei a alegria de suas notícias quanto à marcha de serviço inicial pró-publicação. Muito espera a nossa causa de sua abençoada contribuição”. E então concluiu a carta, demonstrando o cuidado e o respeito que havia entre os dois amigos, confidentes e guardiões de tantas informações fundamentais da Doutrina Espírita. “E enviando-lhe o meu profundo reconhecimento, com minhas lágrimas de emoção e júbilo pela felicidade que me trouxe as suas páginas iluminadas de Verdade e de amor, aguarda suas notícias e abraça-o, com muito carinho e saudade, o seu menor irmão e servidor muito reconhecido, Chico”.
A resposta de Canuto Abreu seguiu para Pedro Leopoldo dias depois, em 1º de setembro de 1952: “Prezado amigo Chico: Sensibilizou-me sua carta de 22 de agosto último. Era eu certamente quem devia primeiro escrever-lhe para registrar com preto no branco o que de gratidão lhe devo. No entanto, como prova de sua imensurável tolerância, a missiva de afeto veio de cima, do chefe para o servo, conforme preceitua o Instrutor”.
O pesquisador refere-se aos dias que passaram ambos em Pedro Leopoldo, estudando os depoimentos e as notícias dos pioneiros do Espiritismo: “Marcam profundamente o meu caminho de romeiro da Verdade as horas de entretenimento que tivemos nesse recanto de menagem¹6 para seu Espírito cativo. Entrar nessa estreita prisão onde você resgata em trabalhos forçados as horas de ócios espirituais de outrora é sempre uma graça para os que arrastam, como eu as guilhetas¹7 em outros campos de expiação”.
Quanto aos fenômenos de percepção do passado no médium, quando das leituras referentes à Gália, comenta o amigo pesquisador em suas palavras poéticas: “Felicito-me de haver despertado em seu longínquo passado os compromissos em priscas eras com a ordem do Carvalho, a ordem do Pinheiro: dentro da floresta escura, a luz avermelhada dos archotes selvagens a rubinizar as frondes sob as quais passamos as primeiras provas do Druidismo, hoje redivivo no Espiritismo. Filiado à Ordem da Cruz pelos mais nobres compromissos”. Allan Kardec foi um pseudônimo escolhido como referência aos tempos dos gauleses, onde viveram muitos dos Espíritos compromissados com a Verdade: “é ainda o Druidismo praticado pelos nossos ancestrais, os gauleses, que mais se aproxima da nossa filosofia atual” (KARDEC, [RE] 1869, p. 114). Depois eles participaram do Cristianismo, antes de revivê-los na Doutrina dos Espíritos, nos tempos modernos¹8. No acervo de Canuto, há muitos escritos, artigos inéditos sobre os costumes, ideias e memórias do druidismo. Além de uma valiosa biblioteca rara sobre cristianismo.
Por fim, Canuto Abreu se refere a documentos e artigos, à história do Espiritismo tão bem acolhida por Chico Xavier: “Haveremos, se Deus o permitir, de trocar mais impressões a respeito. Infelizmente não me será possível dar de logo ao público ‘tudo quanto me foi inspirado. Sei da nossa necessidade de reavivar o valor dos trabalhos de Allan Kardec, cada vez mais esquecidos das gerações que se seguiram a dele. Você já tem feito muito, já tem trabalhado por todos os compromissados do Brasil, puxando quase sozinho o carro de nosso progresso espiritual. Nada, absolutamente nada eu ainda fiz”.
Vale aqui destacar a expressão utilizada por Canuto nessa missiva a Chico Xavier quantos aos trabalhos de Kardec: “Sei de nossa necessidade de reavivar seus valores, cada vez mais esquecidos”.
Em 1952, Canuto e Chico Xavier compartilharam confidências, documentos, relatos dos pioneiros. Receberam as recomendações de Emmanuel e o anúncio da importância do acervo de Kardec para o restabelecimento do Espiritismo. Ambos sabiam dos desvios causados por Leymarie, chamado ovelha negra por Canuto. E também da seita beata contaminada pelo roustainguismo infiltrada no meio espírita brasileiro pela diretoria da FEB. Para amigos íntimos e familiares, Chico comentava sobre os equívocos responsáveis pelo esquecimento da Doutrina original. Conhecendo a história verdadeira, chamava Leymarie de coveiro do Espiritismo. Mas não havia chegado a hora de divulgar tão grave denúncia, para que pudesse ocorrer a necessária recuperação dos valores perdidos.
Mas quando seria a hora certa para levar ao público as fundamentadas revelações? Canuto encerra a carta fazendo um pedido ao médium: “A esse caro chefe, El-Immanu¹9, queira você apresentar meus sinceros afetos e a súplica de ajudar-me com seus conselhos na hora da turvação”.
Depois de alguns anos de cartas trocadas um novo evento trouxe uma reviravolta ao correr dos fatos.
Referência:
1- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo/Paulo Henrique de Figueiredo — São Paulo(SP): Fundação Espírita André Luiz, 2019.
¹6.Termo jurídico utilizado por Canuto Abreu, que era advogado. Menagem significa uma prisão apenas apalavrada, onde o indivíduo não é encarcerado, mas permanece obrigatoriamente no lugar de suas atividades. Essa palavra foi na carta utilizada, de forma figurada, para descrever as atividades espirituais diárias de Chico Xavier, em trabalho incessante pela Doutrina.
¹7. No século 19, os guilhetas eram trabalhadores forçados trazidos da prisão calcetar as ruas de Lisboa com pedras.
¹8. Kardec tratou do assunto em diversos artigos: “A doutrina druídica nos oferece um curioso exemplo do que acabamos de dizer [anterioridade da Doutrina espírita]. essa doutrina, da qual conhecemos somente as praticas exteriores, se elevava, sob certos aspectos, até as mais sublimes verdades; mas essas verdades eram apenas para os seus iniciados: o vulgo, terrificado pelos sangrentos sacrifícios, colhia com um santo respeito o visgo sagrado do carvalho, e não via senão a fantasmagoria”. (KARDEC, [RE] 1858, p. 67)
¹9. Canuto faz referência à origem do nome Emmanuel, do hebraico: El-Immanu, ou Immanu-el, que significa: Deus está junto de nós.